Desde os anos 2010, como já discutimos por aqui, fazer música se tornou uma prática muito mais acessível — não necessariamente mais simples, mas definitivamente mais democrática. Grandes artistas já não dependem exclusivamente de estúdios caros para fazer música, afinal, muitos produzem diretamente do conforto de seus quartos.
Com a popularização de softwares e equipamentos mais acessíveis, o processo criativo evoluiu para algo menos burocrático e mais espontâneo. Nesse cenário pós-internet, a autenticidade das composições muitas vezes substitui a necessidade de produções grandiosas, revelando um novo tipo de artista, que prioriza uma conexão genuína com o seu trabalho sobre a complexidade técnica de gravações tradicionais.
Então, nos últimos 10 anos, diversos nomes se destacaram a partir dessa ideia, como Beabadoobee, Girl in Red, Govier, Faye Webster, Dominic Fike e Cavetown, cada um trazendo abordagens e ideias distintas. Contudo, se há uma artista que foi pioneira para essa vertente e evoluiu para algo muito maior, mesmo que de forma bastante tímida, foi a jovem e fascinante Clairo.
Pretty Girl
O ano era 2017, e Claire Cottrill, uma garota de apenas 19 anos, publicou em seu canal no YouTube, que até então servia somente como um arquivo pessoal para covers e vídeos caseiros, uma de suas primeiras músicas autorais: o single "Pretty Girl". A letra, que já demonstrava uma percepção sagaz sobre relações amorosas assimétricas, contrastava com a simplicidade do videoclipe — gravado em uma webcam, o vídeo mostrava Claire dançando e cantando timidamente, marcando o início de algo que, na época, ela provavelmente nem imaginava.
Mas, apesar da juventude, Claire não era uma completa iniciante no mundo da música. Desde 2012, ela já publicava faixas autorais no Bandcamp e lançava remixes de rap no SoundCloud sob o nome de DJ Baby Benz. Porém, nada se comparou ao sucesso viral de Pretty Girl, que alcançou mais de 100 milhões de visualizações, consolidando-se como um marco indiscutível na música indie moderna e na trajetória da jovem artista.


Com o sucesso, Clairo lançou em 2018 o seu primeiro EP, Diary 001, que inclui algumas faixas produzidas antes do sucesso de Pretty Girl, como a conhecida "Flaming Hot Cheetos" e a encantadora "4EVER". Já em 2019, além de colaborar com a banda Wallows no hit viral "Are You Bored Yet?" e contribuir para a trilha-sonora do filme Skate Kitchen, ela se dedicou à produção de seu primeiro álbum completo, Immunity.
Apesar desse ser o seu álbum de estreia, Clairo já demonstrava aqui grande maturidade em suas composições. As 11 faixas exploram uma variedade de ideias e sonoridades, combinando pop, indie e R&B em um trabalho divertido e diverso, que soa como um brilhante carrossel de criatividade e som. Temas como sexualidade, autoconhecimento e amadurecimento são abordados com sensibilidade, e faixas como "Sofia", "Bags" e "Closer to You" seguem sendo muito reproduzidas até hoje.
No entanto, após esse período de ascensão vertiginosa, Clairo passou a enfrentar diversas críticas, especialmente com acusações de ser uma "nepo baby", devido aos supostos contatos de seu pai na indústria musical. Essa percepção acabou gerando algumas especulações, inclusive em grandes veículos como o The Guardian, o que a levou a adotar uma abordagem mais discreta em seus lançamentos dali em diante. Após três anos, em 2021, esse processo culminou no lançamento de seu segundo álbum, Sling.
Apresentando uma sonoridade mais voltada para o folk, Clairo revela uma fase mais madura e introspectiva de sua carreira. As 12 faixas do álbum trazem uma atmosfera melancólica e pessoal, abordando temas como maternidade, identidade e a busca por equilíbrio emocional. Inspirada pelas reflexões que teve durante a pandemia e pela sua cachorrinha Joanie, Clairo compôs um trabalho mais orgânico e profundo, marcando uma mudança significativa em sua sonoridade.
Charm
Repleto de luz e frescor, o terceiro álbum de Clairo refina os caminhos já trilhados em seus trabalhos anteriores, equilibrando a vibração dançante de Immunity com a maturidade e a experimentação de Sling. Encantador e profundamente evocativo, Charm propõe uma viagem nostálgica através do som, ao mesmo tempo em que marca uma evolução audaciosa para Clairo como artista. Nesse disco, ela abandona a sutileza contida de antes para investir em uma produção mais sensual, ambiciosa e cheia de personalidade.
Lançado em 12 de julho deste ano, Charm foi gravado em fita e traz uma abordagem totalmente autoral, conferindo um toque vintage ao álbum do início ao fim. Repleto de instrumentais sofisticados, o disco combina bateria, guitarras, órgãos, teclados, sintetizadores e baixos de forma única, contudo, como em um cativante romance, essas nuances revelam-se gradualmente, faixa a faixa, fazendo com que cada transição seja como entrar em um universo completamente novo.
Por exemplo, a descontraída "Terrapin" é realçada por preenchimentos de uma bateria estridente, enquanto "Echo" mergulha em uma densidade envolvente, dominada por um órgão tão sombrio quanto psicodélico. Já "Juna", a principal faixa do disco, abraça um R&B retrô irresistivelmente sexy, impulsionada por teclados cintilantes e sintetizadores vintage que convidam todos a dançar. De uma forma ou de outra, as suas 11 faixas são marcadas por uma criatividade latente, inovando minuto a minuto.
Porém, o que mais distingue Charm na carreira de Clairo é a sua escolha de afastar-se do que tradicionalmente seria considerado “alternativo” e aproximar-se de uma sonoridade mais clássica, evocando influências do rock feminino dos anos 70, do soul e de um pop adulto mais rebuscado. Para uma artista que cresceu em um ambiente tão digital e pessoal, é no mínimo encantador ver ela transformando todas essas referências em uma produção grandiosa e sofisticada.
Seguindo essa mesma linha, as letras do disco exploram temas como desejo, solidão e vulnerabilidade, refletindo a complexidade das relações modernas com um toque bastante romântico e trágico, onde o amor é retratado quase como uma aventura. Clairo adota uma linguagem íntima e confessional, abordando as incertezas emocionais e a incessante busca por conexão em um mundo tomado pelo distanciamento.
There's a secret I can't keep from you
And I think you already know
It's in the things I see in you
And what you notice I echo
Sexy to Someone
Em uma matéria publicada pela New Yorker, Clairo admite:
“Todo mundo, incluindo eu, não sabe o que está fazendo. Isso pode ser muito reconfortante e também muito irritante. Este disco tem tanto desejo, tanto de mim sacudindo a outra pessoa e dizendo: 'Por que não? Por que não podemos?'.”
Por mais engraçado que possa ser ouvir isso vindo de uma artista que parece dominar todos os aspectos de sua produção, há algo profundamente humano na maneira como Clairo se apresenta ao vivo com as músicas de Charm — é uma jovem tímida, cercada por músicos mais velhos e experientes, interpretando canções que ela mesma compôs enquanto anda de um lado para outro, olhando para os próprios pés.
Talvez, de fato, ela não tenha todas as respostas, assim como não tinha ideia do impacto que Pretty Girl teria há sete anos. Pode ser que ela simplesmente faça música para se divertir, como uma resposta natural do seu corpo para as ideias que tem, sabe? Cachorros latem, passarinhos cantam, e a Clairo também, desacelerando um mundo que corre cada vez mais rápido, ao mesmo tempo que olha para trás, apreciando a beleza das memórias e referências que moldaram a sua jornada até aqui.
adoro o trabalho de vocês!!! MUITO FODA.... escrevam algo sobre os Djs Kenan e Kel por favorrr (se puderem é claro
Muito massa!!
Numa viagem recente peguei uma edição da Crack Magazine que a Clairo é capa, a entrevista e as fotos estão lindíssimas.