A música como artifício narrativo
5 filmes que exploram o poder da relação de personagens com sons e composições
Como a Repeteco é formada, essencialmente, por entusiastas de variados tipos de arte, fica difícil não pensar em conteúdos que às vezes extrapolam o ato de falar puramente de música. Foi cedendo a esses interesses pessoais que pensamos no formato do texto de hoje. Não estranhe, ainda somos uma revista de música, ok? E inclusive, o tema desse ensaio é a música, porém com uma ênfase maior nos filmes que a incorporam.
Já falamos, anteriormente, dos atores que dão vida a música, mas agora queremos destacar o contrário. E quando os filmes criam narrativas atravessadas pela musicalidade? Não estamos aqui (ainda) nos referindo a musicais ou cinebiografias, mas sim a filmes que destrincham relações únicas entre os personagens e a música, de maneira criativa e apaixonada, utilizando essa forma de expressão como artifício narrativo.
Nesta edição, portanto, separamos 5 filmes que abordam o tema de diferentes maneiras. Alguns mais expositivos, outros um tanto indiretos — mas todos compartilhando o mesmo pretexto, tendo inegavelmente a música como denominador comum.
Alta Fidelidade (Stephen Frears, 2000)
Excelente exemplo de como a música pode ser incorporada de maneira intrínseca à narrativa de um filme, Alta Fidelidade é baseado no romance homônimo de Nick Hornby. O filme segue a vida de Rob Gordon, interpretado por John Cusack, um dono de uma loja de discos obcecado por música e que acabou de ser deixado pela namorada. Em uma forma de lidar com o fim de seu relacionamento, o personagem constantemente quebra a quarta parede, nos contando sobre as suas cinco piores separações, ao mesmo tempo que lida com esta última.
A narrativa em primeira pessoa torna o personagem de Cusack ainda mais passível de identificação. Afinal, quem nunca se sentiu sozinho e insuficiente após um término indesejado? Mesmo sendo muitas vezes imaturo, egoísta — e até um pouco insuportável —, é bem possível que em algum momento do filme encontremos traços da personalidade de Rob Gordon que se assemelhem a nós mesmos.
"O que veio primeiro, a música ou o sofrimento?"
A primeira frase dita no filme — junto com a capa que exibe o protagonista estampado em um vinil — já deixa claro que a trilha sonora será uma das protagonistas da história. Com Stevie Wonder, The Kinks, Bob Dylan, The Velvet Underground, Stereolab, Elvis Costello, entre muitos outros, é feita uma conexão entre o que é escutado e o fato que presenciamos.
A maior parte dos acontecimentos são ambientados na loja de discos, a Championship Vinyl, em Chicago. Lá, Rob se sente em casa e discute álbuns, listas e títulos de canções ao lado dos amigos e funcionários Barry (Jack Black) e Dick (Todd Louiso). Os três emulam com perfeição cômica a personalidade de muitos pertencentes ao nicho de entusiastas de música.
Não há polaridade nas relações retratadas em Alta Fidelidade. Não há um lado certo ou errado, e mesmo que o protagonista siga cometendo erros, presenciamos uma narrativa adulta e surpreendentemente madura. Em especial, o filme acerta em retratar toda complexidade de relacionamentos — assim como também acerta nas referências músicais.
O Silêncio (Mohsen Makhmalbaf, 1998)
A obra aposta em uma maneira poética e, de certa forma, indireta para representar a potência que a música exerce na vida do personagem principal. Nos familiarizamos com a história de Khorshid, um menino cego, que se distraí diariamente — no caminho da loja de instrumentos musicais onde trabalha como afinador — pelo som das músicas tocadas nas ruas do Tadjiquistão. Cada desvio no caminho o faz viver uma experiência diferente.
O arco temporal do filme cobre cinco dias na vida do protagonista, tempo em que ele deve levar o dinheiro que ganha de salário para que a mãe pague o aluguel. Se não o faz, corre o risco de ser expulso de casa. O enredo resume-se à essa trajetória casa-trabalho e faz uso da perspectiva de Khorshid como forma de expandir nossos sentidos auditivos à medida que avançamos e reconhecemos os sons característicos de sua rotina.
O entendimento é o sentimento. Não é preciso conectar as cenas. Basta sentir a poesia e que escorre da tela e nos alcança de maneira tão serena. Somos hipnotizados, também pela fotografia vibrante, mas principalmente pelo resultado da união entre a sinfonia do barulho não intencional da cidade e a música escutada nos intervalos do dever. Consoantes a Khorshid, também somos levados pelo que captamos com os ouvidos.
Marcado essencialmente pela genialidade na manipulação dos sons, aqui o barulho deixa de servir para fins naturalistas e se torna um agente catalizador de todo o simbolismo presente na obra.
Sing Street (John Carney, 2016)
Representando a paixão pelo que a música desencadeia em personagens e na própria audiência, o coming-of-age Sing Street é um retrato reconfortante dos dramas da adolescência. Ambientado na Dublin dos anos 80, explora a busca por identidade, o amor jovem e o resultado de sonhos em confronto com a realidade. Atento aos detalhes, o diretor John Carney consegue permear sentimentos intensos e realísticos a qualquer adolescente através de uma narrativa leve e, muitas vezes, divertida.
Conor, o protagonista, é um adolescente que enfrenta problemas familiares e, por conta disso, é transferido para uma nova e rigorosa escola. Lá, conhece Raphina, uma garota mais velha por quem se apaixona. Para impressioná-la, ele forma uma banda de rock, chamada Sing Street — trocadilho com o nome do colégio, Synge Street —, e pede a ela que participe de um videoclipe.
Um dos destaques da obra está no êxito em capturar a atmosfera musical dos anos 80, apresentando uma trilha sonora nostálgica, com destaque para The Cure e Duran Duran, que evoca a energia da época e representa as influências do new wave, synthpop e pós-punk nas canções da Sing Street.
Ao longo do filme, os personagens enfrentam desafios na vida amorosa, escolar e familiar — mas encontram força e apoio na música e no vínculo que compartilham como membros da banda.
Ao assistir a obra, somos tomados por uma mistura de esperança, amadurecimento e aceitação da realidade. No fundo, vale a pena tentar, vale a pena seguir o caminho que, mesmo arriscado, é aquele que faz nosso coração bater mais forte. A verdadeira realização vem da coragem de seguir a própria trajetória, mesmo que isso signifique enfrentar desafios e incertezas.
Durval Discos (Anna Muylaert, 2002)
Uma progressão de acontecimentos pautados no absurdo com um pano de fundo musical. Essa seria a melhor definição sucinta do filme dirigido por Anna Muylaert. Em cenas que beiram o onirismo de Twin Peaks, a história dá luz à vida de Durval, dono de uma loja de discos localizada dentro da casa de sua mãe, Carmita. A relação entre os dois, desde o início, já se mostra um pouco incomum.
A mundanidade aparente nos primeiros minutos de tela acaba dando espaço a uma atmosfera um pouco mais misteriosa a partir do momento que Durval convence a mãe a contratar uma diarista para ajudá-la nas tarefas da casa. Nesse ponto, começamos a deparar-nos com uma constante quebra de expectativas, na melhor e mais inesperada maneira possível.
Honestamente, é possível que a música aqui não desempenhe um papel tão crucial na narrativa. No entanto, a ideia de Durval possuir uma decadente loja de LP’s em plena era dos CD’s demonstra um traço essencial da personalidade do personagem: sua inabilidade de evoluir. Fato que irá influenciar todo o desenrolar dos acontecimentos seguintes.
“Dentro da baleia a vida é tão mais fácil
Nada incomoda o silêncio e a paz de Jonas
Quando o tempo é mal, a tempestade fica de fora
A baleia é mais segura que um grande navio”
Mestre Jonas - Sá & Guarabyra
O último destaque, portanto fica para a trilha sonora. A partir de canções de Sá & Guarabyra (seria Durval Mestre Jonas e a casa de Carmita a baleia?), Jorge Ben, Novos Baianos, Chico Buarque, Caetano Veloso e com a presença da própria Rita Lee no elenco, é inegável a conexão da obra com a música.
Tudo Sobre Lily Chou Chou (Shunji Iwai, 2001)
A narrativa etérea transpassa a vida de Yuichi, um garoto de 14 anos que mora em uma pequena comunidade rural japonesa. Vítima de um estresse interminável imposto pela vida doméstica, escolar e social, a obsessão do jovem pela cantora de dream pop Lily Chou-Chou torna-se uma forma de escapar dessa realidade na qual está inserido.
Yuichi conhece Lily através de Hoshino, um garoto que antes de se tornar a fonte do abuso que sofre na escola, era seu amigo e confidente. A música entra em sua vida no momento em que se encontra no ápice do espiral de desamparo, perdendo gradativamente qualquer resquício de identidade. É o Éter das canções de Lily e sua natureza mística que sustentam Yuichi. A partir do contato com outros fãs em fóruns online, encontra conexões e se sente acolhido.
Para o garoto, existem dois mundos: o real, onde encara seu sofrimento em todos os âmbitos da vida, e o éter, a atmosfera virtual de Lily. Testemunhamos, aos poucos, o deslocamento do personagem da vida real — encontrando consolo somente no éter e na sonoridade hipnotizante da cantora.
Em uma trança de conexões, Lily Chou Chou se torna popular no círculo de Yuchi. Os jovens compartilham, de maneira particular à cada um, do sentimento de preenchimento que o Éter proporciona naquele panorama cinza e angustiante.
A obra nada mais é que uma coleção de memórias, um retrato de adolescência que poderia se aplicar a qualquer jovem que encontra refúgio em relações parasociais com personalidades fora do alcance. Não há um clímax, nem uma linearidade que caracteriza narrativas tradicionais. O fio condutor é a música angustiante e enigmática que se reverbera pelas cenas, quase nos tornando também reféns da sonoridade.
Lily Chou Chou não é apenas uma cantora, ela é uma ideia. Ela é a grande protagonista. É cada lágrima e cada sorriso. Cada memória é marcada pelo álbum, cada letra é uma conversa e cada acorde é um momento compartilhado. Ela é a base do mundo em que esses adolescentes vivem.
“I wanna be
I wanna be
I wanna be just like a melody
Just like a simple sound
Like in harmony”
Glide - Lily Chou Chou
repeteco eu te amo