Lembro bem da primeira vez que escutei Without You I’m Nothing inteiro. Foi também meu primeiro contato com o Placebo — sem contar com “Every You, Every Me”, que tocava esporadicamente em rádios. Na época, durante o isolamento devido à Covid-19, no começo de 2020, estava constantemente transitando entre obsessões e o disco acabou tornando-se uma delas.
Não foi uma paixão imediata. Escutei o álbum, gostei muito de algumas faixas mas não havia ainda me aficionado pela banda, até porque não sabia de nada sobre os membros ou contexto em que se inseriam (pensava, inclusive, que se tratava de uma vocalista, depois fui percebendo que esse é um erro comum). A chave virou, no entanto, após assistir ao vídeo abaixo, que até hoje considero uma das performances mais lindas e hipnotizantes já feitas.
Pensei: se David Bowie recomenda, quem sou eu para não ouvir? E quanto mais pesquisava sobre Placebo, quanto mais apresentações ao vivo assistia, quanto mais álbuns escutava e mais imagens salvava no pinterest (bons tempos de ócio), percebi que já estava dentro de outra obsessão — que perdura um pouco até hoje, na verdade.
Vamos começar do início, então. Placebo é uma banda tida como “britânica”, formada por dois membros não-britânicos: o vocalista e guitarrista Brian Molko, nascido na Bélgica e o baixista Stefan Olsdal, sueco. Os músicos se conheceram em um colégio em Luxemburgo, e depois de anos, em 1994, voltaram a se encontrar em Londres, onde decidem formar uma banda. Previamente chamada de Ashtray Heart, os amigos só vão mudar o nome para Placebo um ano antes das gravações do homônimo disco de estreia, lançado em 1996.
Esse disco inaugura a estética tão característica e, ao mesmo tempo, inefável, que a banda perpetuou, especialmente durante os anos 90. As guitarras sujas, a angústia e a voz anasalada de Molko somadas à sua androginia nos palcos, posicionaram Placebo na contramão dos gêneros musicais em evidência na época, como o grunge e o britpop, por exemplo.
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Mas o foco desse texto é no próximo álbum, o que viria a consolidar a personalidade da banda, ao que apostavam em uma maior complexidade sonora, explorando emoções, perspectivas e relacionamentos de maneira altamente original. Without You I’m Nothing é, para mim, o melhor e mais importante projeto do Placebo e é por isso que ele é o grande tema desta edição.
I’m unclean, a libertine
Lançado em 12 de outubro de 1998, o disco, ainda que mais maduro comparado ao antecessor, ainda tem um ar juvenil. As canções conversam diretamente com a revolta adolescente, enquanto percorrem mais a fundo temas de melancolia, desejo, identidade, vícios e sexualidade.
“Não éramos uma banda britânica, não éramos os caras heterossexuais do pub, éramos os esquisitos crossdressers que tocavam um tipo de punk romântico. Acho que estávamos apenas tentando forjar nossa própria identidade.”
Em entrevista à revista Louder, Stefan Olsdal traça um pouco do panorama por trás da música que faziam e dos obstáculos consequentes. Inseridos em um ambiente onde não pareciam pertencer a nenhuma cena musical, acabaram criando a própria. Isso resultou na identificação imediata de muitos jovens que, em seus próprios contextos, se sentiam da mesma maneira.
A banda emprestava a sensualidade e intensidade do glam rock de T Rex (vale conferir o cover de “20th Century Boy”), David Bowie e Roxy Music. Mesclando esses elementos a um garage rock sujo e visceral, criaram uma identidade rebelde que muito se opunha ao que estourava nas rádios do Reino Unido da época. Basta ver os sucessos de Blur e Oasis, no mais óbvio dos exemplos, para entender que o que conferiu o sucesso ao Placebo foi justamente a diferenciação em relação ao popular, abraçando aqueles que não se enxergavam na cena heteronormativa e mais comum do britpop. De fato, Placebo, e Without You I’m Nothing, não eram comuns.
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A friend with weed is better
O disco se apresenta com “Pure Morning”, faixa mais sombria e introspectiva, que traduz com perfeição o deslocamento e a solidão de ser a única testemunha dos próprios sentimentos. Seu videoclipe foi muito exibido na época da MTV, o que acabou consagrando essa como uma das músicas mais populares da banda.
Na sequência, a acelerada “Brick Shithouse” incorpora o fantasma de um amante ciumento e agressivo, que não sabe lidar com a distância de seu objeto de desejo. Nas palavras de Molko:
Uma alma desencarnada flutua acima, observando os vivos. É uma história de fantasmas, sobre alguém observando seu amante fazer amor com a pessoa que o matou.
Continuando, ouvimos a mais pop “You Don’t Care About Us”, que encapsula a rebeldia juvenil já comentada, seguida por “Ask For Answers”. A última, a canção mais calma lançada pela banda até esse ponto, apresenta também uma das letras mais atraentes do disco.
Time to pass you to the test
Hanging on my lover's breath
Always coming second best
Pictures of my lover's chest
Ainda no tema de relacionamentos, mas com acento ainda mais performático e dramático, chegamos na faixa que dá nome ao disco. Uma das mais especiais, capturou o interesse de ninguém menos que David Bowie, que pediu para gravar uma parte da canção. A colaboração entre Bowie e Molko acabou se tornando a versão mais famosa de “Without You I’m Nothing”. Sobre isso, Brian Molko comentou:
“Quando o álbum foi lançado, Bowie ligou para a banda, dizendo: ‘Eu quero cantar uma música neste álbum. Eu tenho que fazer isso’. Dissemos ‘Ok, claro’ e sugerimos transformar isso em um dueto entre Brian Molko e David Bowie.
Estávamos no estúdio e lá Bowie nos disse que iria cantar a música homônima do álbum. Ele começou a sussurrar a harmonia no meu ouvido. Meus pés ficaram suspensos do chão. Percebi que ele ia causar uma explosão”
É compreensível a atração de Bowie por essa faixa em específico. Ela parece ser o ponto onde todas as emoções se encontram e se intensificam, causando, de fato, uma explosão — que se espalha cada vez mais à medida em que a harmonia entre as vozes distintas percorre a lírica passional. O verso abaixo é o clímax do disco inteiro. Até hoje me pego admirando como todas as palavras soam perfeitas, exatamente onde deveriam estar, despertando os sentimentos que nasceram para despertar.
I'm unclean, a libertine
And every time you vent your spleen
I seem to lose the power of speech
You're slipping slowly from my reach
You grow me like an evergreen
You've never seen the lonely me at all
Seguindo para o restante das faixas, passamos pela sequência de “Allergic (To Thoughts of Mother Earth)”, “The Crawl” e “Every You, Every Me”. Todas ótimas e igualmente potentes, tanto na sonoridade quanto na lírica. A última, inclusive, é até hoje uma das canções mais conhecidas do Placebo.
As duas próximas, “My Sweet Prince” e “Summer’s Gone”, já são bem mais melancólicas que as antecessoras. A voz embargada de Molko parece deixar as emoções falarem por si só, seja declamando as letras sombrias da primeira ou o se encontrando no desamparo da última.
A sequência final forma um contraste interessante. “Scared of Girls”, frenética, explora a sexualidade e o arrependimento de maneira agressiva. Já “Burger Queen” é bem mais introspectiva. Nela, Brian Molko traça a sua própria história, lembrando de sua infância em Luxemburgo e os descobrimentos posteriores de uma pré-adolescência aparentemente conturbada.
E para fechar o disco (pois é, ainda não acabou), “Evil Dildo” entra em cena. Uma faixa bônus, escondida no fim de Burger Queen, que transforma em música ameaças de morte deixadas na caixa postal de Brian Molko. Nada mais Placebo que encerrar um disco desse jeito.
Hey motherfucker, I'm after you. I know where you live.
Luxemburguer queen
Mesmo com Without You I’m Nothing alcançando muito sucesso, ainda arrisco dizer que o disco permanece um segredo íntimo entre os que realmente compartilham das experiências abordadas. Ou como coloca o jornalista James Oldham, made by freaks for the freaks.
A partir do disco, a banda conseguiu se colocar em um local muito próprio para a discussão dos temas que abordavam. Com Brian Molko sendo abertamente bissexual e Stefan Olsdal abertamente gay, a música do Placebo sempre foi entendida como queer e a banda — junto com suas aparências cada vez mais fluidas em termos de gênero — nunca se esquivou de apresentar-se ativamente como tal.
Em entrevista à Vice, Olsdal comenta sobre o impacto do álbum nesse sentido.
“Na época de Without You I'm Nothing, acho que os shows do Placebo começaram a se tornar um espaço seguro para os jovens que sentiam que não se encaixavam. Estávamos definitivamente levando a maneira como nos vestimos para um lugar mais fluido em termos de identidade, gênero e orientação sexual — durante os inebriantes e cheios de hormônios vinte e poucos anos em que ainda estávamos”
A forma com que falavam abertamente sobre sexualidade, principalmente para a imprensa, permitiu o surgimento de um debate maior sobre essas questões. Ao Belfast Telegraph, Molko fala sobre a maneira em que se apresentavam nessa época.
"Éramos crossdressers no começo da carreira. Não era só um capricho; víamos aquilo como um posicionamento político. Queria mesmo que os homofóbicos me olhassem e questionassem sua sexualidade, que acredito mesmo ser fluida. Pra mim, não se trata de gênero – e sim pessoas"
A qualidade musical é fundamental, mas a performance e a estética adotada também desempenham papéis igualmente atrativos na construção de uma banda. E o Placebo acerta em cheio ao unir esses dois aspectos, da maneira mais autêntica e sincera possível.
o brian molko é o único que me entende