O primeiro resultado sugerido quando digito "o que é shoegaze?" na ferramenta de busca (além da resposta da inteligência artificial que decido ignorar) é o seguinte:
Shoegaze é um subgênero do indie e rock alternativo caracterizado por sua mistura fluída de vocais obscuros, distorção e efeitos de guitarra, feedback e volume avassalador.
Isso, de fato, oferece algumas pistas de como esse tipo de música pode soar, mas, na prática, ainda há uma lacuna no que "vocais obscuros" e "efeitos de guitarra" podem significar.
Já é bem difundido que shoegaze foi um termo cunhado pela imprensa britânica para caracterizar grupos de bandas que usavam uma quantidade grande de pedais — fato que os levaria a manter a cabeça baixa, olhando para o chão (ou para os sapatos) na maior parte do tempo dos shows. Mas, dentro dos próprios nichos que alavancam o alcance deste tipo de música, ainda é comum se deparar com contradições nas características e bandas que integram o gênero.
Diante disso, além de buscar definições generalistas, talvez outro caminho para encontrar esclarecimentos para a pergunta que estampa o título desse texto seja mediante um panorama histórico, na clássica metodologia de traçar, ou forçar, uma ordem cronológica onde tudo se encaixe e facilite a compreensão do fenômeno. Vamos começar por isso, então.
A história
Se queremos localizar um suposto nascimento do shoegaze, é preciso olhar para a cena musical europeia pós-punk e dream pop que começou a ganhar forma nos anos 80. As hoje clássicas Cocteau Twins e The Jesus and Mary Chain são as bandas mais memoráveis neste começo dos experimentos com texturas sonoras e do uso mais desmedido de distorções. O disco Head Over Heels, da primeira, foi lançado em 1983 e pode ser considerado um dos grandes precursores do que viria a se desenhar dentro do gênero, mesmo sendo ainda muito característico do pós-punk. Já em 1985, The Jesus and Mary Chain concebia Psychocandy, que é frequentemente considerado o ponto de partida para o shoegaze em si. Com o uso de camadas de distorções e efeitos etéreos, vinha-se criando um som capaz de estabelecer uma balanceada mescla entre peso e suavidade.
Ainda nos anos 80, bandas norte-americanas que produziam uma sonoridade mais alternativa, muitas vezes puxadas para o noise e hardcore punk, como Dinosaur Jr., Hüsker Dü e Sonic Youth, também representaram forte influência para o desenvolvimento do estilo até então britânico, graças aos vocais introspectivos e texturas mais densas nos instrumentos.
Em meados de 1990, a popularidade do shoegaze atingia seu ápice, especialmente devido a grupos como My Bloody Valentine, Ride, Lush, Slowdive, Medicine e Drop Nineteens. Loveless, disco de 1991, é até hoje considerado um definidor da sonoridade do gênero. A sobrecarga de efeitos de guitarra, pedais de delay, reverb e chorus, músicas que flutuam, que soam oníricas, onde delineamos muito pouco do que acontece, mas ainda adoramos a experiência. Tudo isso se faz presente nesse disco de My Bloody Valentine. E viria a se fazer presente em muitos outros lançamentos sucessores.
Já no Brasil, embora o shoegaze só tenha ganhado uma cena mais evidente a partir dos anos 2010, é possível encontrar referências anteriores do gênero em bandas como Loomer, de Porto Alegre, cujo próprio nome é uma referência direta ao MBV. Ludovic, grupo paulistano mais associado ao pós-hardcore, também se aproximava do shoegaze em certos momentos, através da atmosfera sufocante e da lírica angustiada das faixas, em especial no clássico disco Idioma Morto, de 2006. Essas bandas, ao lado de outras experimentações pontuais nos anos 2000, serviram como um prelúdio do que viria a se consolidar mais fortemente anos depois.
Na década seguinte, já presenciamos o surgimento de nomes ainda muito ativos na cena atual, como Lupe de Lupe, gorduratrans, sonhos tomam conta e terraplana, para citar alguns — mesmo que exista grande divergência de opiniões na classificação em que algumas das bandas se encaixam.
O problema
E é na experiência de categorizar – de tentar encaixar cada uma dessas tantas bandas citadas em classificações específicas –, que encontramos o problema fundamental. Percebemos que traçar esse paralelo histórico não é suficiente para saber definir o que é e o que não é shoegaze, já que na vida real, as produções artísticas acabam indo além de uma lista de adjetivos.
Não seria “When the Sun Hits”, de Slowdive, uma faixa muito mais similar a Cocteau Twins do que a My Bloody Valentine? Mas também não estaria "Only Shallow” muito mais voltada ao peso de Hüsker Dü? Até que ponto Drop Nineteens não é hardcore e Ride não é dream pop? Lupe de Lupe é mesmo shoegaze? Na verdade, não. E se for, também pouco importa. Tudo isso vira um pouco inútil se pararmos para pensar.
É verdade, o shoegaze acabou se tornando um termo guarda-chuva simplesmente pela necessidade que temos de classificar aquilo que consumimos. E talvez isso não possa ser de todo considerado um problema, mas sim a consequência inesgotável deste algo maior, deste desejo por categorização. É preciso nomear as coisas, aparentemente.
Em A Sociedade de Consumo (1970), fazendo uma muito rasa contextualização, Jean Baudrillard analisa como o capitalismo não se limita apenas à produção e distribuição de mercadorias, mas também à criação de significados e símbolos em torno dessas mercadorias. Esses significados e símbolos são mediadores essenciais da identidade social e das relações humanas. A categorização, portanto, não se refere apenas a uma forma prática de organizar as coisas, mas é uma maneira de diferenciar e hierarquizar a sociedade com base no que se consome. E para a arte, a consequência disso é a nula distinção entre objetos culturais e materiais.
É necessário apreender, de uma vez por todas, a lógica social da diferenciação como fundamental na análise e que é precisamente na relegação do valor de uso (e das “necessidades” que se lhe referem) que se institui a exploração dos objectos como diferenciais e como signos - nível este que é o único a definir especificamente o consumo. […] Em suma, os objectos culturais perderam todo o significado humano: o proprietário, de certa maneira, transforma-os em feitiços que lhe permitem apoiar uma atitude. O que (a prioridade do valor diferencial) Riesman aplica aos objectos “culturais” (a este respeito, não existe diferença entre “objectos culturais” e “objectos materiais”).
Claro, estamos falando de shoegaze, apenas. Não é como se discutir o fato de Lupe de Lupe se encaixar aqui ou não fosse um ato modelador da sociedade de forma direta. Mas, analisar as coisas sob esse prisma nos ajuda a perceber que há um problema com a criação de categorias em torno de objetos, especialmente culturais — que contribuem para o fortalecimento desses como bens de consumo, muito mais do que como criações artísticas.
A solução?
Agora reconhecida a tendência pela busca de rótulos e pioneiros — assim como eu mesma fiz alguns parágrafos atrás —, precisamos perceber que o que vemos aqui, usando de exemplo o shoegaze, é, na verdade, um processo criativo construído por camadas de influências acumuladas ao longo do tempo. Assim como muitos outros estilos musicais, o gênero não pode ser reduzido a uma fórmula simples, tampouco a um único responsável por sua criação.
Se sabemos que interessava comercialmente à imprensa britânica que houvesse essa categorização entre bandas, por que seguir venerando dogmaticamente o termo? Não seria melhor aceitar a mutação do estilo, e até mesmo a falta de importância que essa descrição representa para a sonoridade das bandas, no fim das contas? Claro, é bom pertencer, mas forçar uma categoria fixa sobre algo que nasceu justamente da experimentação pode ser uma forma de sufocar o que há de mais vivo no gênero: a fluidez.
Todas as influências evoluem, se diluem, e se mesclam com outras estéticas ao longo do tempo. Hoje, artistas que nunca pisaram em solo britânico na virada dos anos 80 seguem explorando o shoegaze com uma linguagem própria, adicionando elementos novos na mistura. Se o termo ainda serve para orientar ou aproximar, ótimo. Mas usá-lo como um dogma pode limitar a capacidade criativa dentro da cena.
O shoegaze, assim como outros estilos que nascem em intersecções — no caso, entre o rock alternativo, o dream pop, o noise — se fortalece precisamente por não caber em um único molde. A tentativa de encaixá-lo e de fazer bandas encaixarem-se nesta etiqueta é, muitas vezes, mais um reflexo da necessidade de ordem do mercado e da indústria do que uma realidade artística.
Longe de me atribuir o papel de dar uma lição, mas talvez a ausência de uma resposta clara para a pergunta do título desse texto seja, na verdade, uma excelente oportunidade para começar a encarar a música de um jeito diferente. Ao invés de seguir à risca definições que tentam a todo custo encaixar a música em um molde, poderíamos aceitar quando algo simplesmente não se encaixa ou transborda as fronteiras dos gêneros.
Quando aceitamos essa fluidez da música, ela se torna mais livre – e é nesse espaço de liberdade onde mora a graça, a diversão de ouvir, descobrir, e experimentar.
Acho muito interessante que, na contemporaneidade, tudo fica mais fluido e menos sólido pela velocidade das coisas(pode-se dizer que pela internet, mas principalmente pelos processos produtivos da qual a internet faz parte). Desse modo, algo que se apercebe nas artes, é muito difícil dar o tempo e o respiro para a consolidação de um gênero ou qualquer outra categoria. Por exemplo: o blues. O blues levou anos para se desenvolver e se consolidar, e mesmo assim continua sujeito a experimentações. Então o shoegaze, já num outro período da história, com outra velocidade, não teve um tempo tão grande assim para se consolidar, gerando essa volatilidade para o gênero que, aliás, é uma das coisas que o torna tão interessante.
Ótimo post!
Que materia incrivel. Da gosto de ler <3