Além de Artaud: a permanência de Luis Alberto Spinetta
A vida e os muitos projetos da lenda do rock argentino
Desde que o algoritmo das redes sociais que utilizo entendeu que tenho uma inclinação à me interessar por assuntos relacionados a música, lembro de, com certa frequência, ver um chamativo álbum verde chamado Artaud sendo referenciado em alguns cantos da internet. Curiosa graças ao combo capa + nome + formato esquisito, busquei escutá-lo e a partir daí não só entendi o motivo de tamanha comoção, mas também nutri grande apreço pelas faixas. No entanto, até então, isso havia sido tudo que nascera desse meu primeiro contato com Luis Alberto Spinetta — nome que, na época, tampouco conhecia.
Foi somente após um reencontro mais recente com o rock argentino, através de novos interesses por Fito Paez, Charly García e Gustavo Cerati, que conheci o músico por trás do tão famoso disco verde nomeado após o escritor francês. E posso dizer que essa é uma saga um pouco infinita, por mais redundante que isso seja, devido à quantidade de projetos em que El Flaco (apelido carinhoso que Spinetta recebe) se envolveu durante seu período em atividade. Mas é um percurso tão infinito quanto prazeroso. E aqui espero conseguir transmitir um pouco do que conheci e senti ao desbravar essa discografia tão fascinante.
Escrevo o texto de hoje, portanto, com o objetivo de apresentar (ou revisitar) o que há para além de Artaud, um dos discos de rock argentino que mais chegam à ouvidos de fora do território do Rio da Prata. Claro, reconheço e concordo com todo culto atrelado ao álbum, mas acredito também que uma parte de sua importância reside na possibilidade de abrir portas para a riquíssima trajetória musical de Spinetta.
Infância, influências, e uma Argentina complexa
O músico nasceu em 23 de janeiro de 1950, em Buenos Aires, em um período de grandes transformações políticas e sociais na Argentina. Crescendo durante as décadas de 50 e 60, foi exposto a um contexto de turbulência, com o país vivendo sob regimes militares e momentos de instabilidade e repressão política. No entanto, a música sempre foi parte de sua vida, mesmo diante esse cenário. Desde a infância, Spinetta foi profundamente influenciado pelo pai, que era cantor de tango, e graças a ele deu os primeiros passos como músico. Referências a esse tradicional gênero argentino podem também ser vistas ao longo de toda sua obra.
Já na adolescência, a atmosfera cultural da Argentina foi marcada pela chegada do rock através das bandas inglesas, em especial Beatles e Rolling Stones, que começaram a ganhar popularidade entre os jovens argentinos. O rock britânico teve um impacto significativo em Spinetta, que, como muitos de sua geração, se sentiu atraído pela inovação e pela liberdade expressiva dessas bandas. O ambiente efervescente da juventude da década de 1960, marcada por movimentos de contracultura e pelos primeiros sinais de resistência à ditadura militar, forneceu a Spinetta uma base sólida para desenvolver uma sonoridade que misturava a experimentação do rock internacional com as nuances da música tradicional argentina que tanto marcou sua infância.
Ao longo da sua carreira, Spinetta se afastou de um tipo de música popular facilmente categorizável, explorando gêneros diversos e desafiando as convenções dos estilos pelos quais se aventurava. Essa busca por novas sonoridades o levou a formar várias bandas, como Almendra, Pescado Rabioso, Invisible e Spinetta Jade, sempre com um forte componente poético e filosófico nas composições — que também dialogavam com as complexas realidades políticas e sociais da Argentina, especialmente durante o período de repressão da ditadura militar. Aos poucos, Spinetta se consolidou como um dos mais importantes nomes da música latino-americana e do rock experimental mundial.
No entanto, após passar meses lutando contra um câncer de pulmão, falece em 2012. Suas cinzas foram jogadas no Rio da Prata, seguindo a última vontade do músico, próximo ao Parque de la Memoria de Buenos Aires, construído para lembrar os desaparecidos durante a ditadura militar. Para assegurar a eternidade do artista, o governo argentino estabeleceu o dia 23 de janeiro como o Dia Nacional do Músico, em homenagem a seu nascimento.
Almendra
Almendra foi o primeiro projeto musical de Luis Alberto Spinetta, e também o primeiro que escutei após Pescado Rabioso. O grupo surgiu em 1967, fruto dos ensaios entre Spinetta, que assumia os vocais principais e a guitarra, e seus colegas de escola: Edelmiro Molinari (guitarra e vocais), Emilio del Guercio (baixo e vocais) e Rodolfo García (bateria).
Considerada uma das bandas fundadoras do rock argentino, ao lado de Los Gatos e Manal, Almendra se destacava por ser diferente, por pavimentar um importante caminho de sensibilidade lírica até então pouco explorado no rock do país. O grupo deve muito dessa importância aos seus dois primeiros álbuns: Almendra e Almendra II, com ênfase no primeiro, que é considerado um marco do gênero. A capa do disco, desenhada pelo próprio Spinetta aos 19 anos, já por si só demonstra o talento artístico do músico e entrega parte da poesia musical que ele estava criando naquele momento.
Escuto Almendra e penso em uma juventude com infinitas possibilidades, em como essa sonoridade mais amadora, acústica, simples, oferece destaque à honestidade desses jovens de 19, 20 anos, cheios de influências e vontade de criar. Me fascina pensar que Spnietta compôs “A Estos Hombres Tristes” aos 18 anos. É um começo mais que apropriado. Em entrevista, o artista resumiu um pouco desse sentimento genuíno de compromisso com a música.
Nosso lance era que queríamos ser tudo ao mesmo tempo: Piazzolla, The Beatles, The Double Six of Paris. Fomos ouvir jazz, gostávamos de folclore de vanguarda, naquela época Waldo de los Ríos vinha com sons eletrônicos e era enorme, vi ele na televisão e comecei a chorar porque ele disse: “Isso também é vanguarda”. […] De todas essas conversas e horas perdidas, de todas aquelas cartas com Rodolfo, surge a premissa de criar música com total liberdade de horizonte. Almendra não foi uma coincidência.
Pescado Rabioso
Pronto. Já chegamos ao famoso Pescado Rabioso, e isso quer dizer que um dos maiores álbum de todos os tempos foi escrito por um Spinetta ainda muito jovem. Sim, 23 anos. Mas, antes de destrinchar um pouco a beleza de Artaud, quero falar sobre o que foi lançado antes e sobre a formação desse grupo tão importante.
Após o fim do Almendra em 1970, Luis Alberto Spinetta se viu em uma fase de reinvenção artística. Ele queria criar algo novo, mais livre e experimental, sem as limitações de uma banda convencional. Foi assim que, em 1971, surgiu o Pescado Rabioso. Esta nova banda seria a plataforma para a busca de Spinetta por novas formas de expressão musical, fundindo o rock, o jazz, a música clássica e as experimentações mais vanguardistas. A formação original contou com Spinetta na guitarra e nos vocais, David Lebón no baixo, Black Amaya na bateria e Carlos Cutaia no teclado.
No entanto, em Desatormantándonos, primeiro disco lançado pelo grupo, em 1972, essa experimentação que Spinetta queria alcançar ainda não era muito visível. Acredito que esse álbum reflita uma faceta mais direta de sua música, diferente da ousadia que viria em outros trabalhos posteriores. Longe de ser ruim, este é, simplesmente, um lançamento de rock mais sólido, enraizado no blues e no hard rock da época.
Logo, Pescado 2, o disco lançado no ano seguinte, já foi um prelúdio importante para o que viria em seguida. Nele, a banda já mostrava um distanciamento da sonoridade mais tradicional de Almendra e do disco predecessor, se aproximando de uma experimentação mais profunda. Vejo este como um álbum de transição, em que o rock progressivo e psicodélico se misturam com influências de jazz, música clássica e música folclórica argentina. Aqui, Spinetta já se apresenta mais introspectivo e filosoficamente inclinado. O disco também evidencia a formação de uma base sonora mais livre, marcada pela improvisação e pela fuga das convenções.
Tecnicamente, Pescado 2 é considerado o último álbum da Pescado Rabioso, já que Artaud, também de 1973, foi escrito unicamente por Spinetta após a dissolução do grupo, mas lançado sob o mesmo nome. É difícil encontrar palavras que soem certas para descrever um disco como esse. Lembro que tive um professor que dizia que devíamos evitar ao máximo encher nossos textos críticos de adjetivos, para assim tentar alcançar uma análise mais complexa e menos limitante. Eu nunca consegui seguir esse conselho à risca, mas acho válido tentar aplicá-lo para falar desse disco.
Artaud consegue, assim como Spinitta já vinha fazendo, desafiar as convenções da música e, ao mesmo tempo, falar diretamente ao mais íntimo de quem o escuta. O álbum parece nascer da necessidade urgente do artista em se expressar sem amarras, influenciado pela loucura e pela desconstrução do poeta Antonin Artaud, ao qual o título faz referência. E o resultado disso é um misto de desespero e beleza traduzido em faixas únicas, distintas entre si, mas claramente integrantes de um conceito narrativo geral, de uma composição pensada para o álbum como um todo. O que escutamos é uma profundidade dotada de simplicidade estética, que parece refletir e reafirmar uma busca desesperada de Spinetta por si mesmo.
Invisible
Após a dissolução de Pescado Rabioso em 1973, Luis Alberto Spinetta deu início a mais um capítulo de sua trajetória como músico. Ao lado dos músicos Tomás Gubitsch, Machi Rufino e Pomo Lorenzo, fundou a Invisible, banda voltada ao rock progressivo.
A banda foi, de fato, um projeto diferente, e não necessariamente uma busca por uma evolução radical como sua predecessora, mas uma experimentação dentro de um novo campo musical. Esse movimento se deu dentro da mesma ideia de liberdade artística, mas com nuances distintas da fase com Pescado Rabioso. Aqui, Spinetta mergulha de cabeça no rock progressivo, explorando arranjos mais elaborados, compassos irregulares e uma sonoridade também introspectiva. O primeiro álbum da banda, Invisible (1974), já deixa clara essa diferença, com faixas como “Jugo de Lucuma”, que fazem uma ponte entre o rock progressivo e o jazz, mas também com uma forte identidade argentina.
No entanto, é em El Jardín de los Presentes (1976), o terceiro e último álbum, que o grupo realmente atinge sua maior profundidade. Logo que foi lançado, o disco alcançou grande sucesso dentro do território argentino, mas, posteriormente, tornou-se também outro marco do rock progressivo latino-americano. A multiplicidade das composições é fascinante, com passagens que variam de momentos suaves e mais acústicos a outros mais densos, enérgicos e experimentais. Spinetta se apropria do formato do rock progressivo sem perder a poesia característica que sempre lhe foi tão própria. A guitarra, agora, fica ainda mais em evidência — e deixo um destaque especialmente para o solo que se escuta na faixa “Alarma entre los ángeles”.
Mas Invisible, assim como Pescado, também teve uma vida breve, acabando em 1977.
Carreira solo e as bandas eternas
Apesar de formar tantos grupos, Spinetta, em paralelo a tudo isso, ainda nutria uma carreira solo igualmente prolífera. Mas foi somente a partir do início dos anos 80, enquanto conciliava uma breve reunião da Almendra com outro grupo, mais voltado ao jazz rock, chamado Spinetta Jade, que decidiu focar em seus álbuns solo e em colaborações com outros artistas como Fito Paez e Charly García.
Em 1982, lança Kamikaze, um ótimo disco solo, mesmo que heterogêneo, já que é composto de descartes de outros projetos. Já em 1985, em parceria com um jovem Fito Paez ainda no início de sua carreira, divulga o álbum La La La, que une o melhor dos dois artistas.
Mas é em 1991 que Peluson Of Milk, na minha opinião o melhor de seus discos solo, chega ao mundo. É nele que se encontram canções que alcançaram enorme sucesso entre a juventude argentina da época, como “Seguir Viviendo Sin Tu Amor” e “Ganges”.
Avançando um pouco no tempo, chegamos no fatídico ano de 2009, quando Spinetta apresenta seu último e maior (literalmente, devido a impressionante duração de cinco horas e meia) concerto, o Spinetta y las Bandas Eternas, realizado no Estadio Vélez Sarsfield. É possível encontrar todas as performances no YouTube do artista, mas deixo aqui um destaque para minhas favoritas: “Bajan”, que apresentou junto de Gustavo Cerati; “Rezo por Vos”, ao lado de Charly García; e “A Estos Hombres Tristes”, com os membros originais de Almendra.
É bonito que este último show de Spinetta tenha sido marcado pela reunião de todos seus capítulos musicais, e por isso, essa também foi a forma com que eu escolhi finalizar este texto — que trata justamente da pluralidade desse artista, que atingiu tantos marcos e recebeu tantos créditos de pioneirismo ao longo de todos seus projetos.
Spinetta reconhece a diversidade musical que alcançou e sabe o quão duradouro será tudo o que produziu. Por isso, mesmo com sua morte três anos após o fantástico concerto, sabemos que ele nos deixou com a certeza de que seu legado seria eterno.
Eu gostei muito do texto, mas gostaria de ouvir seus comentários sobre Oboi, Tester de Violencia e o grupo Spinetta y los socios del desierto.
No primeiro, um Spinetta mais onírico, etéreo, suspenso no ar; no segundo, um Spinetta traumatizado pelo assassinato das mães de Fito Paez e discutindo a violência, mas conservando o ar de suspensão, até um pouco em linha com outras experiências argentinas, como o Borges na literatura; no terceiro, há um Spinetta absolutamente cru, visceral, e no chão, mas ainda conservando uma poética inigualável, na mesma época em que lançou um DVD acústico bastante interessante.
Esse texto me deixou muito feliz porque abre o caminho pra discutir mais esse gênio latino-americano, com uma versatilidade poucas vezes vista. Ele inclusive tem uma música inspirada em uma praia brasileira onde veraneava - Garopaba, em Santa Catarina.
Valeu!!!!
Muito bom