O compositor, apresentador e, acima de tudo, rapper, Emicida é um daqueles artistas que dispensam apresentações, mas caso você tenha perdido os últimos 20 anos, aqui vai um breve resumo. Leandro Roque de Oliveira, conhecido pelo alter ego Emicida, começou a se destacar na cena do rap nacional em meados de 2006, quando tinha apenas 20 anos, participando de batalhas de freestyle em sua terra natal, São Paulo.
No entanto, quem o acompanhava pela internet, vendo-o apenas como um viral de freestyle com rimas fulminantes e lírica surpreendente, não imaginava que, em 2009, o garoto lançaria uma das mixtapes mais importantes da história do rap no país.
Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida Até que Eu Cheguei Longe estabeleceu Emicida como um músico versátil, capaz de rimar com poder e fúria em faixas como "E.M.I.C.I.D.A (Adoooro)", "Triunfo" e "Ooorra… (A Que Deu Nome a Mixtape)", ao mesmo tempo que demonstra leveza e paixão em "A Cada Vento", "Outras Palavras" e "Fica Mais um Pouco Amor". O CD apostou em uma fusão dinâmica de hip hop, samba e jazz, transcendendo o entendimento do que era o rap na época.
Cala boca e pensa em quantas história cê tem pra contar
Falar que ao dizer a rua é nóiz pago de dono da rua
Desculpa, eu vivo isso e a incerteza é sua
Se você não se sente dono dela, xiu, não fode
E antes de escrever um Rap, me liga e pergunta se pode
De forma ampla, Emicida tece uma narrativa de dualidades, adotando a perspectiva de amigos e familiares para contar histórias de ganhos e perdas, além de descrever, é claro, sua própria trajetória. Combinando samples inusitados, versos complexos, referências que vão das novelas aos quadrinhos e uma sensibilidade única para capturar o mundo e a vida ao seu redor, Leandro construiu seu primeiro clássico de maneira natural, quase despretensiosa.
Milionário do Sonho
Em 2010, Emicida lançou Emicídio, um álbum que mantém grande parte da estética de sua mixtape anterior, mas com uma abordagem mais pessoal e uma produção mais sofisticada, ainda que caseira. Com 18 faixas, o CD inclui os sucessos "Rua Augusta", a intensa "Então Toma" e a romântica "Eu Gosto Dela".
Três anos depois, Emicida retornou aos títulos longos com um trabalho profundamente belo, mesclando poesia, melancolia, reflexão e esperança. O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, seu primeiro álbum de estúdio, produzido por Felipe Vassão, é considerado por muitos como a sua obra-prima. O disco apresenta instrumentais rebuscados que combinam guitarras elétricas, flautas, pianos e batidas tradicionais de rap em sintonia com instrumentos típicos da MPB, criando uma experiência flutuante, mas sem deixar de ser familiar.
Entre algumas de suas faixas, o álbum surpreende com poemas interpretados por Emicida e Elisa Lucinda, atriz e poetisa brasileira. Juntos, contam a história de um garoto que rompe o véu urbano que o isolava, entrando em harmonia com a sua cidade por meio de sua arte. O disco também conta com participações especiais de Pitty, MC Guimê, Rael, do grande Wilson Das Neves e até mesmo de sua mãe, Dona Jacira. Eleito o álbum do ano de 2013 pela revista Rolling Stone, O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve aqui marcou o início de uma nova fase na carreira de Emicida, agora como um verdadeiro ícone do rap nacional.


No entanto, essa não seria a última vez que Emicida cantaria sobre família, narrando o seu passado, explorando diferentes gêneros musicais e questionando o seu papel como rapper. Nos anos seguintes, lançou o disco Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa..., o qual reflete muito de sua experiência como pai e foi fortemente influenciado pelo samba — indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Urbana em 2016. Para mais, lançou diversos singles, participou da São Paulo Fashion Week de 2016 em uma apresentação histórica, realizou concertos grandiosos, como o de 10 Anos de Triunfo, entre diversas outras realizações como artista. Quer mais?
Mas e o álbum? Emicida só lançaria um novo disco no final de 2019, apenas alguns meses antes da pandemia de COVID-19 e em tempos de intensa agitação política no país. Nesse cenário, AmarElo surgiu como um alento e um testemunho de que a serenidade é revolucionária.
É Tudo Pra Ontem
Em uma época marcada por isolamento, ansiedade, desesperança e conflito, Emicida fez um disco que celebra a união e a bondade. Contudo, nem sempre boas ações são recebidas da mesma maneira, o que desperta um grito de revolta que enche nosso peito e gela nosso estômago. AmarElo não nega essa realidade, não tenta escondê-la, pelo contrário, suas faixas a compreendem e oferecem a certeza de que, por pior que seja a fase, ela passará. Respire fundo, descanse um pouco e então coloque tudo no lugar.
É hora que o vermelho colore o folclore
É louco como adianta pouco, mas ore
Com sorte, talvez piore
Não se iluda, pois nada muda
Então só contemple as flores
Ao longo de suas 11 faixas, Leandro pinta o colorido retrato de uma vida adulta simples, onde a beleza reside nas pessoas ao seu redor e nos pequenos momentos de paz do cotidiano. Um beijo antes do trabalho, uma brincadeira com os filhos, uma corrida matinal, um disco bem ouvido ao entardecer, um gol do seu time ou até mesmo uma tupperware que a tampa ainda encaixa — tudo é banal, e por isso é belo.
“A gente está com a visão cheia de nuvens. Proibiram-nos de ver as coisas que importam de verdade. A gente já percebeu isso várias vezes, e a música, que para mim é a grande bússola e o grande livro de história deste país, já apontou para esse lugar várias vezes. Faz as pessoas pensarem de mil maneiras a respeito de uma situação.”
Explicou em entrevista. Romântico? Sim, mas esse é exatamente o ponto. Emicida utiliza o amor ao seu favor, em um disco que promove o autoconhecimento. De maneira engraçada, em faixas como “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida”, chega a desconstruir a imagem do "rapper", destacando que mesmo ele, um dos nomes mais proeminentes do gênero, possui suas fragilidades, mas também é cheio de gentileza e doçura.
Aos fãs que esperavam um álbum agressivo, Emicida oferece faixas como "Ismália", "Eminência Parda", “AmarElo” e "Libre", carregadas de revolta, sim, mas a partir de abordagens mais sóbrias, revelando a suja realidade do país sem floreios. Em resposta, rima com intensidade, propagando o empoderamento e transformando a frustração em um combustível para seguir em frente.
Combustível do meu tipo? A fome
Pra arregaçar como um ciclone (Entendeu?)
Pra que amanhã não seja só um ontem
Com um novo nome
Já em “Principia”, “Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo)”, “Pequenas Alegrias Da Vida Adulta” e “A Ordem Natural Das Coisas”, entre angústias e esperanças, Emicida defende, acima de tudo, a união. Cantando que “o sorriso é a única língua que todos entendem”, celebra a diversidade, o diálogo, a ancestralidade e a serenidade.
Para além de suas letras, o disco opera de maneira colaborativa, com Emicida rimando ao lado de artistas pertencentes a diversas gerações e grupos, desde Zeca Pagodinho até Jé Santiago, de Fernanda Montenegro a Pabllo Vittar. É como diz o Pastor Henrique Vieira na primeira faixa do álbum: “O vínculo de todas as cores diz que o amor é amarelo.”
Grande parte da produção de AmarElo está documentada no filme Emicida: AmarElo - É Tudo Pra Ontem, disponível na Netflix e dirigido por Fred Ouro Preto. Mais do que um making-of do disco ou uma gravação de seu concerto no Theatro Municipal de São Paulo, o filme atua como uma verdadeira aula de história, explorando o papel fundamental da comunidade negra na construção dos principais espaços culturais do país e como, ao longo dos anos, essas pessoas foram afastadas desses locais.
“O rapper relembra que é por meio da música rap, do break e do grafite que os jovens da periferia paulistana encontram uma plataforma para se expressar e decidem marcar como ponto de encontro uma região de fácil acesso: o centro de São Paulo. O estilo segue pelas periferias do Brasil e se torna um movimento de conscientização a respeito do racismo e da desigualdade social. Com isso, a música do rap se funde de forma intensa ao universo da música popular brasileira, principalmente o samba, que redefine ambos os estilos. Hoje, com a efervescência do ambiente digital, esses artistas alcançam conquistas raras ou inéditas. Vencer, para o Emicida, é muito mais do que ter dinheiro ou ser famoso. O que os jovens desejam, segundo o rapper, é reescrever a história do país.”
Escreve Augusto Martins de Jesus em “Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem” – o discurso dos excluídos e a reivindicação de espaços culturais fechados no contexto da negritude brasileira.
A Gira Final
Mais de dois anos após seu último show na cidade, Emicida retornou a Curitiba com sua Gira Final, turnê de despedida do álbum AmarElo, que ele mesmo define como um experimento social. O concerto, realizado na Live Curitiba em uma noite fresca de sábado, 22 de junho, lotou a casa e a iluminou com belos hits e vitrais coloridos, em um prisma dançante e catártico.
O som começou com DJ Mitay, esbanjando um repertório amplo em seu set, indo de Tim Maia a Beyoncé, animando o público com muito estilo e groove. Em seguida, o rapper curitibano Pecaos subiu ao palco acompanhado de NEKTRASH e Menor’D, representando a zona sul da cidade com faixas ácidas e reflexivas que cativaram a plateia. Inclusive, encantaram tanto que, ao final da apresentação, Emicida subiu ao palco para abraçar e tirar uma foto com os músicos, demonstrando genuína admiração.
Mais tarde, voltou acompanhado por DJ Nyack e sua banda, entregando performances apaixonadas e envolventes. Emicida surpreendeu a plateia tocando flauta, dançando, abraçando os fãs e com uma setlist extensa que abrangeu faixas de todos os seus álbuns, dos mais antigos até os mais recentes, em uma apresentação bela e fervente.
Com participações especiais de Drik Barbosa, Rashid e Karol Conká, Emicida reforçou, mais uma vez, a importância da união, tanto na arte quanto em nossas vidas — é como defende na faixa "Yasuke": "As pessoas são como as palavras, só têm sentido se junto das outras". Também expressou seu amor pela capital paranaense, ressaltando a influência de Paulo Leminski em seu trabalho e o fluxo de idas e vindas que o levaram até ali.
“Curitiba é a própria poesia do Paulo Leminski. A vida é uma sucessão de encontros e desencontros, e se eu não tivesse me encontrado com a obra de Paulo Leminski, eu nunca teria conhecido o poema que diz: ‘O amor é o elo entre o azul e o amarelo’.
Nessa sucessão, curiosamente, não posso deixar de citar que foi graças ao meu pai e ao meu irmão que me apaixonei pelo trabalho do Emicida, mesmo que, naquela época, eu nem pensasse em gostar de rap ou sequer de música. Entre todas as letras mencionadas aqui, nenhuma encapsula melhor a essência do que Emicida expressa em suas composições do que um verso de Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo). O músico incentiva a criação artística, a gentileza, a escuta e o compartilhamento do que criamos, pois, como ele diz: "Quem divide o que tem é que vive pra sempre".
E a partir dessa filosofia, Emicida já é imortal.