Entre a poesia e a música de Paulo Leminski
Sobre o legado do poeta curitibano na música brasileira
No sábado anterior à publicação desta matéria, comemorou-se os 80 anos de Paulo Leminski, um dos escritores, poetas, professores e jornalistas mais aclamados do Brasil, cuja obra é especialmente ilustre em Curitiba, cidade onde nasceu e viveu. Com mais de 40 obras publicadas, as quais incluem romances, ensaios, traduções e poemas, o trabalho de Leminski transcende o tempo, sendo objeto de estudo e celebração até os dias de hoje.
Leminski tinha uma poesia rebelde, marcada por um estilo único que utilizava-se de trocadilhos, brincava com ditados populares e incorporava gírias e palavrões — tudo com uma forte influência do haicai. Essa forma de poesia curta e objetiva, herdada da tradição japonesa, foi uma das principais inspirações do poeta, unindo tradição e inovação em algo profundamente original.
No entanto, entre as inúmeras facetas artísticas de Paulo Leminski, uma que frequentemente é esquecida pelo grande público é a de sua relação com a música. O poeta, que era amigo íntimo de grandes nomes da MPB como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Itamar Assumpção, Rita Lee, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Arnaldo Antunes e Gal Costa, encontrava em suas melodias um estímulo que a prosa e a poesia, por si só, não podiam oferecer.
Com isso em mente, hoje iremos explorar a carreira de Paulo Leminski para além de seus livros e poemas, destacando como o seu trabalho discreto, mas profundamente significativo na música, continua a ser uma fonte de inspiração e encantamento mais de 30 anos após a sua morte.
Se houver céu
Em 2014, Estrela Ruiz Leminski, a terceira filha de Paulo Leminski com a poetisa e letrista Alice Ruiz, lançou Leminskanções, um álbum que traz faixas inéditas e outras já conhecidas compostas pelo pai. Esse disco chama a atenção para o fato de que Leminski foi mais do que um renomado letrista, destacando o vasto repertório musical que ele deixou e a sua significativa contribuição para a música brasileira.
As 21 faixas, compostas ao longo de sua vida, são impregnadas pela ironia ligeira que é característica de seu trabalho. Leminski observa o ambiente urbano ao seu redor, capturando as contradições e paradoxos da suposta “cidade modelo” de Curitiba. Além disso, suas letras exploram temas variados como amor, morte, luto, política, religião e amizade em diferentes níveis de melancolia e acidez.
A minha desilusão é ficar aqui pra dizer que não
Falei sem pensar pois pensei que na lei desse amor
Eu pudesse ficar à vontade
Quem cala consente o silêncio é inventado por gente
Igual a você nada sente
No entanto, essa não foi a primeira ocasião em que as composições de Leminski foram interpretadas por outras vozes. Durante as décadas de 60 e 70, a casa de Paulo Leminski na Cruz do Pilarzinho, na periferia de Curitiba, era um ponto de encontro vibrante para amigos, artistas renomados e jovens escritores. Conhecido como "Guruato da Marginália", esse espaço foi o berço de inúmeras amizades e parcerias que moldaram a trajetória do poeta.
Áurea Leminski, a segunda filha de Paulo e Alice, recorda em entrevista alguns dos momentos vividos na casa.
“Foi na primeira casa do Pilarzinho que Gal e Caetano apareceram um dia de repente, saltaram de um táxi e bateram na porta perguntando se por acaso naquele endereço morava um tal Paulo Leminski.”
Foi justamente nessa espiral colorida de encontros e desencontros que muitas das canções mais marcantes de Leminski ganharam vida, inspiradas pela amizade, pela sagacidade do poeta e, é claro, por festas e boa bebida.



Durante esse período de intensa produção artística, Paulo Leminski não só colaborou com muitos dos artistas mencionados anteriormente, como também se tornou uma fonte de inspiração para as suas obras. Caetano Veloso e Gilberto Gil, por exemplo, sempre receptivos às influências literárias e poéticas, encontraram na abordagem inovadora de Leminski uma grande referência para as suas próprias experimentações musicais.
Dessa parceria, nasceram músicas como “Verdura”, escrita por Leminski e interpretada por Caetano Veloso no álbum Outras Palavras. Além disso, a faixa “Oxalá (Cesta Cheia da Sexta)”, composta pelo poeta e registrada por Gilberto Gil no disco To Be Alive Is Good (Anos 80), destaca-se como um dançante hino em defesa da espiritualidade e da simplicidade. Outro fruto dessa amizade é “Estrela”, uma composição de Gilberto Gil realizada em homenagem ao nascimento da filha de Leminski, Estrela Ruiz.
Arnaldo Antunes, por sua vez, sempre demonstrou uma profunda admiração por Paulo Leminski, refletida em sua própria carreira repleta de experimentações entre a poesia e o rock. Entre as suas colaborações com o poeta estão as faixas “Luzes” e “Além Alma”. Além disso, Antunes também participou ativamente do projeto Leminskanções, trabalhando com Estrela Ruiz para preservar e celebrar o legado do amigo.
Para além desses principais exemplos, Paulinho Boca de Cantor, o grupo A Cor do Som, Itamar Assumpção, a banda Blindagem, Edvaldo Santana, Susana Sales e Zeca Baleiro são apenas alguns dos muitos nomes que envolveram-se direta ou indiretamente com a obra de Leminski, em trabalhos que deram vida às suas composições.
Talvez seja até um pouco improdutivo apenas listar os artistas que inspiraram-se em Leminski, pois o poeta transformava os aspectos mais simples da experiência humana em arte, quase como se isso fosse uma extensão natural de sua própria respiração. Sua forma única de brincar, conversar e inspirar fez com que muitos jovens artistas de sua época o vissem como uma espécie de guru, fato que certamente afetou uma geração inteira de músicos e escritores.
O guitarrista Paulo Teixeira, ex-integrante da banda A Chave e companheiro musical de Leminski, capturou essa ideia perfeitamente em entrevista:
“Não imagino a cidade, a música sem ele, de tão importante que ele foi pra todos. Ele era muito ligeiro, muito ativo, muito perspicaz nas coisas. Se falavam uma bobagem, ele transformava aquilo em alguma coisa. Eu fazia um riff e ele já dava uma ideia do que aquilo poderia ser, de uma palavra a um verso surgia uma música.”
Além alma
O legado de Paulo Leminski é quase como um fantasma: onipresente, mas perceptível apenas para quem o observa com atenção. Na música, essa presença é ainda mais sutil. Embora tenha sido um compositor extraordinário e um letrista melhor ainda, Leminski raramente esteve no centro das atenções de seus projetos musicais, preferindo agir de forma mais discreta. Sua personalidade, no entanto, fez dele um amigo recorrente dos grandes nomes da MPB, o quais ele tanto influenciou e apoiou. Em relação a isso, Estrela Ruiz o descreveu em entrevista:
“Ele se expressava por meio de mil formas textuais, mas a melodia, para ele, era uma questão de honra. Ele dizia que precisou virar compositor para que pudesse escrever poesias do jeito que fazia. Ele mesmo se defendia e ficava muito puto quando diziam que ele não era compositor ou quando listavam os compositores de Curitiba e ele sequer era lembrado.”
A partir disso, é impressionante pensar na quantidade de jovens que, nos últimos anos, lotaram a Pedreira Paulo Leminski em Curitiba para assistir a grandes shows e festivais de música. O local, batizado em homenagem ao poeta, é um símbolo de como o legado de Leminski transcende a literatura, impactando a cultura brasileira de maneiras amplas e inesperadas.
Assim como a Pedreira se tornou um importante espaço de convergência artística, a própria casa de Leminski no Pilarzinho era um alegre epicentro de encontros criativos e culturais. Lá, a ideia central era criar e compartilhar, reunindo amigos, artistas renomados e jovens escritores em torno da efervescência cultural que o poeta sempre inspirou.
Ambos os locais, em suas diferentes escalas e contextos, refletem o espírito de Leminski: um eterno incentivador da arte e da cultura, cuja influência continua a ressoar na cena com enorme paixão e encanto.