Portishead, uma das bandas percursoras do trip-hop, responsável por diversificar a indústria musical inglesa dos anos 90, alcança a maestria logo em seu primeiro disco. Dummy, produzido entre 1993 e 1994, se coloca como um dos mais inventivos da época — e no próximo mês comemora 30 anos de existência e influência.
Foi em 1991, graças ao inusitado encontro de Geoff Barrow e Beth Gibbons durante o intervalo de um curso de empreendedorismo em Bristol, que Portishead surgiu. Barrow não era novo na música, apesar de ter apenas 20 anos na época, já havia trabalhado com artistas como Masssive Attack e Tricky. Isso serviu de grande influência para ele, além de permitir que tivesse tempo no estúdio para produzir seus próprios projetos. E Gibbons, então com 29 anos, era compositora, já havia sido integrante de uma banda cover e se apresentava em alguns pubs de Bristol.
Ao perceberem que tinham planos e gostos similares, os músicos se juntaram, chamaram o guitarrista de jazz Adrian Utley para formar o trio e deram início a esse novo projeto. O nome foi escolhido por Barrow, que resolveu homenagear a pequena cidade de Portishead, na Costa Ocidental de Bristol, onde nasceu e viveu durante a infância.
Trip-Hop, rótulos e características
Portishead, juntamente com outros grupos britânicos de Bristol, desempenhou um papel crucial na popularização do trip-hop. Este gênero musical noventista surgiu como uma fusão de jazz, soul e R&B com elementos eletrônicos downtempo e profundamente influenciado pelo hip-hop americano. Originário da necessidade de explorar novas fronteiras sonoras, o trip-hop capturou uma essência distinta, que era tanto sombria quanto introspectiva, permeada por uma atmosfera erótica e uma forte profundidade emocional.
Essa fusão de estilos musicais resultou em projetos altamente inventivos, que se destacaram no cenário da época. Ao lado de Tricky, DJ Shadow e Massive Attack, Portishead emergiu como um dos principais representantes do gênero. Com as batidas desaceleradas, texturas eletrônicas e o uso de samples, o trip-hop foi capaz de influenciar uma geração de músicos e produtores em todo o mundo. Em entrevista ao The Paris Review, Daddy G, do Massive Attack, relatou o panorama criativo por trás do surgimento de sua banda (e, consequentemente, do gênero).
“Quando formamos o Massive Attack, basicamente éramos DJs que iam para o estúdio com nossos discos favoritos e criávamos faixas. Na época, tentamos copiar todo o estilo dos artistas americanos de hip-hop, mas percebemos que, como artista, é importante ser você mesmo. Não fazia sentido falarmos sobre o sul do Bronx. Lentamente, mas com segurança, tivemos que recuperar nossas identidades como artistas britânicos que queriam fazer algo diferente com nossa música”
O caráter sombrio e introspectivo desse estilo musical se manifestou em letras profundamente líricas, muitas vezes mergulhando em temas de melancolia, desilusão e alienação. É uma música que não se contenta em seguir os moldes convencionais — pelo contrário, desafia as expectativas e explora novas maneiras de combinar elementos musicais diversos em uma narrativa emocionalmente rica.
Embora Portishead seja relutante (com razão) em se rotular como trip-hop, dada sua natureza diversificada e expansiva, é inegável que a banda tenha sido uma das responsáveis por definir e popularizar essa sonoridade.
Dummy
É quase cinematográfica a trajetória que fazemos pelas faixas de Dummy. E falando em cinema, a banda até produziu um curta-metragem antes do lançamento do álbum, o To Kill a Dead Man — que tem uma de suas cenas estampando a capa do disco.
Já se tornou clichê dizer que a primeira faixa é uma síntese da experiência que estamos prestes a ter ao longo do disco, eu sei, mas é impossível não aplicar isso a “Mysterons”. Regada por uma atmosfera assustadora que parece vir direto de filmes de ficção científica — graças aos elementos eletrônicos empregados —, a canção apresenta toda melancolia lírica a ser observada nas faixas subsequentes.
Divine upper reaches
Still holding on
This ocean
Will not be grasped
Em seguida, conseguimos ter noção da capacidade experimental dos artistas ao reinventarem sons já existentes. A vulnerável e misteriosa “Sour Times” utiliza um loop de um sample estendido do tema de Missão: Impossível, por Lalo Schifrin’s, para abrigar as letras sedutoras. Já “Strangers”, incorpora samples de “Wait Please”, de Eddie Harris e de “Elegant People” do Weather Report, para criar contrastes entre linhas calmas e outras mais potentes na paisagens sonora.
Nos transportando para um dos momentos mais suaves do álbum, “It Could Be Sweet” é, também, a primeira a música a ser gravada pela banda. Escrita por Beth Gibbons, a faixa explora, a partir de sua voz repleta de honestidade, a fragilidade do amor e as consequências desse sentimento. A próxima, “Wandering Star”, compartilha dessa suavidade, mas aposta em uma característica sombria, evidenciada pelos scratches e riffs repetitivos. ‘The blackness, the darkness, forever’, é o verso que fica quando todos os instrumentos começam a perder força.
Então, em “It’s a Fire”, são os vocais singulares de Gibbons que conduzem a narrativa e hipnotizam quem escuta. Parecendo ponderar sobre fé, a artista expele uma mensagem ao mesmo tempo transcendental e esperançosa.
So let it be known for what we believe in
I can see no reason for it to fail
'Cause this life is a farce
I can't breathe through this mask
Like a fool
So breathe on, sister, breathe on
Com uma das introduções mais marcantes do álbum, “Numb” exagera nas distorções sonoras e constrói um viciante paradoxo lírico. Com intensidade, oferecendo uma de suas melhores performances vocais do disco, Beth canta: ‘This loneliness wont leave me alone’.
A melancolia, o erotismo, a suavidade e a violência. Tudo isso se mistura em “Roads”. Sem pressa alguma, ouvimos um relato febril sobreposto por um instrumental crescente, que preenche o espaço com delicadeza. Violinos se misturam com elementos eletrônicos num perfeito retrofuturismo.
Storm in the morning light
I feel, no more can I say
Frozen to myself
I got nobody on my side
And surely that ain't right
“Pedestal” e “Biscuit” compõem, talvez, a sequência mais interessante e esquecida do álbum. Na primeira, Portishead atinge o ápice da inventividade ao combinar graves marcantes e os clássicos elementos eletrônicos do hip-hop à influência do jazz do músico Andy Hague, que opera um inesperado solo de trompete ao final da canção.
Já Biscuit, traz uma das letras mais sombrias e contemplativas do disco. Aqui, uma voz distorcida afirma ‘never fall in love again’, enquanto é interrompida por scratches e batidas repetitivas, até que dá espaço à voz desesperançosa de Beth.
At last, relief
A mother's son has left me sheer
The shores I seek
Are crimson tastes divine
I can't make myself heard
O álbum se completa com a faixa responsável por alavancar o reconhecimento do grupo. “Glory Box” é definitivamente a mais conhecida do disco todo — e esse sucesso é merecido. Sedutora, conquista logo na primeira vez que escutamos. Narra uma história assustadora de romance e feminilidade, com guitarras cálidas e vocais misteriosos. É um grande final, que eterniza a experiência de Dummy e marca um dos pontos mais altos da carreira do grupo.
Give me a reason to love you
Give me a reason to be a woman
I just wanna be a woman
Legado
Além da destreza musical, Dummy simboliza um ponto de virada na evolução da música britânica — e, eventualmente, também ultrapassa essas fronteiras e exerce uma influência na música de modo geral.
É interessante notar como o disco serve de guia para artistas em busca de explorar novos territórios sonoros e profundidades emocionais, inspirando uma geração de músicos de diferentes estilos. Trinta anos depois, Dummy segue solidificado nos pilares do trip-hop e da música noventista, mantendo a relevância e inventividade mesmo com o passar do tempo.