Gagacabana e a importância de eventos históricos no mundo da música
A magia que apenas os dois milhões de presentes podem partilhar
Se você está lendo esse texto (e mora no Brasil), deve saber que no último dia 3 de maio ocorreu, no Rio de Janeiro, um show lendário da multiartista Lady Gaga, sem ingressos comercializados. De acordo com diversas fontes, o público total do show foi entre 1,5 e 2 milhões de pessoas na praia de Copacabana, o que colocou a apresentação no top 5 de maiores públicos ao vivo de todos os tempos, o primeiro lugar para performances femininas. Nada disso é novidade. Parece até meio óbvio ser uma revista sobre música e escrever sobre o show do ano, mas meu medo era ser um texto sem vida — visto que nenhum representante da Repeteco visitou o estado Guanabara nos últimos tempos —, então, resolvi ter uma abordagem diferente.
O evento do começo do mês faz parte de uma iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro que consiste em trazer artistas internacionais uma vez por ano para tocar de graça nas areias da praia, de frente ao Copacabana Palace. O projeto, denominado Todo Mundo no Rio, começou ano passado com um também memorável show de Madonna, onde a rainha do pop movimentou cerca de 1,6 milhão de pessoas numa espécie de evento-teste. Desta vez, a cidade como um todo se preparou, gerando um deslocamento em massa puramente pela oportunidade de ver uma das maiores divas pop desta geração.
Como dito anteriormente, nós da Repeteco não estávamos presentes, vimos tudo pelos recortes da transmissão por meios lícitos, então recorremos a um outro jeito de falar sobre: a partir do olhar do outro. Perguntei a três amigos que saíram de Curitiba unicamente na intenção de ver o show em Copacabana. Eles serão meus guias para escrever algo mais pessoal, ainda que pela experiência de terceiros.
Você sabe quem é Lady Gaga, né?
A menos que você tenha nascido nos últimos dois meses ou tenha morado sua vida toda na caverna de Platão, o nome Lady Gaga é conhecido. Mas, por via das dúvidas, vamos trazer um breve resumo sobre a carreira de uma das artistas mais importantes da atualidade.
Nascida em Nova Iorque, a descendente de italianos Stefani Germanotta sempre teve pretensão para a arte. Desde criança, ela foi atrás de participação em teatros musicais e teve a capacidade de aprender a tocar piano com apenas quatro anos. Aos 17, entrou em um conservatório de música ligado à Universidade de Nova Iorque (NYU), mas largou no segundo ano para construir sua própria carreira. Ainda que tenha assinado com a Def Jam Records aos 19 anos, o início foi tortuoso e cheio de altos e baixos, incluindo a saída da gravadora após apenas três meses.
O melhor ainda estava por vir, principalmente após encontrar seu nome artístico, Lady Gaga, que tem origem incerta. De acordo com o produtor Rob Fusari, o apelido veio após ele ver a semelhança da potência de sua voz com a de Freddie Mercury, vocalista do Queen, que possui uma canção intitulada "Radio Ga Ga”. O produtor defende que a concepção de Lady Gaga veio ao acaso, cantando a música da banda britânica para a artista. Já o jornal New York Post, trouxe outra versão, em 2010, de que o nome havia sido pensado comercialmente após parceria da agora Lady Gaga com a DJ Lady Starlight no decorrer de 2007, que as levou ao Lollapalooza numa apresentação aclamada pela crítica, considerada avant-garde.
O sucesso da parceria levou Gaga à um contrato com a Sony como compositora. Trabalhou ao lado de nomes renomados da época, incluindo Britney Spears, Fergie e Pussycat Dolls. Quem reconheceu o talento da nova-iorquina foi um nome também em alta em 2008, o cantor Akon, que a chamou para gravar dois singles em sua gravadora: "Just Dance” e “Poker Face”. Estava ali escrita a história.
O lançamento dos singles alavancou seu álbum de estreia, The Fame, que a levou até o Grammy Awards, vencendo a categoria de melhor gravação dance, com a canção Just Dance. Sua primeira turnê solo veio no ano seguinte, em 2009. O ano foi cheio para a artista, que lançou o segundo álbum, The Fame Monster, que adicionou 8 músicas ao já popular The Fame, incluindo o seu maior hit comercial, “Bad Romance”, além de hits como “Alejandro” e "Telephone”, ao lado de Beyoncé, o que a colocou num lugar de destaque em todo o cenário da música pop.
Não demorou para a personalidade Lady Gaga ser tão conhecida quanto a cantora, considerando sua presença na mídia. Em todo tapete vermelho, poderíamos esperar por algo avassalador da intérprete, tendo alcançado o auge da repercussão no VMA 2010 com o famoso vestido de carne crua, que hoje tem por si só uma indicação ao hall da fama do rock (sim, o vestido). Seu momento de reconhecimento no fim da década marcou um ressurgimento das divas pop extravagantes, que tem uma presença tão forte quanto a potência vocal.
No momento que reconhecia seu triunfo no prêmio da MTV, Gaga anunciou o álbum Born This Way, que serviria como “próximo passo na carreira”. O lançamento serviu para colocar gasolina em uma das maiores rivalidades possíveis da música pop: a Igreja Católica. Isso se deve aos dois maiores sucessos comerciais, a música homônima e a canção "Judas”. “Born This Way” ressalta um dos principais compromissos da cantora em toda sua carreira: a aceitação de grupos oprimidos, em especial seus fãs LGBTQ+. Já Judas, é acusada até hoje de sacrilégio com figuras religiosas, em especial após o clipe onde ela interpreta Maria Madalena.
Se não ficou claro ainda, Lady Gaga é uma artista multifacetada, estando presente não só em diversos gêneros musicais como no mundo audiovisual. Após o lançamento de Artpop (disco que carrega boatos de que a própria artista não gosta tanto quanto os fãs), ela mudou totalmente seu foco, fazendo parceria com o lendário Tony Bennett para o álbum Cheek to Cheek, abraçado no jazz. Depois, trocou de novo, foi para o country com Joanne, em 2016. Na mesma época, a artista fez parte da renomada série American Horror Story. Em 2018 veio a maior honraria de sua carreira de atuação, uma indicação ao Oscar na categoria de melhor atriz, protagonizando o filme Nasce Uma Estrela, escrito, dirigido e co-estrelado por Bradley Cooper. A premiação não veio nessa categoria, mas ela saiu aquela noite com a estatueta de melhor canção original, por “Shallow”, do mesmo filme.
A carreira musical da diva pop deu uma esfriada com o sucesso inicial como atriz, mas isso mudou com a pandemia. No ano de 2020, Gaga lançou Chromatica, álbum que retornaria para o pop, principalmente no viés da house music. Sem poder mobilizar uma turnê de divulgação, a cantora lançou no ano seguinte uma versão alternativa do álbum chamada Dawn of Chromatica, que conta com remixes das músicas lançadas e nomes do dance contemporâneo, como Arca, Charli XCX e Pabllo Vittar. Enquanto se preparava para o lançamento do filme Casa Gucci, Gaga estreou mais um álbum ao lado do agora amigo Tony Bennett.
A mescla entre a música e o cinema já está mais do que sacramentada na carreira de Lady Gaga, vide os lançamentos envolvendo as trilhas sonoras de Top Gun: Maverick e Joker: Folié a Deux, filme que ela também estrela ao lado de Joaquin Phoenix. Após a recepção negativa do filme, Gaga retomou seu lado musical com o disco Mayhem, aclamado pela volta às origens da diva pop, com sucessos como “Abracadabra”, “Disease”, a colaboração com Bruno Mars, “Die With a Smile”, e a homenagem póstuma a Tony Bennett, “Vanish Into You”. Gaga retorna ao Brasil após uma memorável apresentação no Coachella, em abril.
O que motiva participar de uma loucura coletiva?
Antes do show, é preciso entender o que motiva sair do seu estado, viajar até o Rio de Janeiro e gastar fortunas com hospedagens duvidosas para um show “gratuito”. Por isso, minha primeira pergunta para meus amigos que estavam lá foi justamente o que motivou eles a se comprometer com o que alguns chamam de loucura (eu prefiro chamar de paixão). Roberto, que estudou e fez teatro comigo, disse que vai além da própria Lady Gaga, que ele é muito fã, mas é pelo coletivo, viver uma cidade inteira temática por um evento, que pessoas de todos os lugares possíveis se reuniram em uma causa e poder estar presente num momento histórico.
ROBERTO: Tem toda essa coisa dela falar diretamente com o público LGBT e gerar essa mensagem de aceitação e de comunidade que é muito forte nela, além de tudo isso que reverbera em mim também, tem toda a questão do evento, de ser uma coisa que reúne pessoas de todo o Brasil, de todas as partes do mundo, todo mundo tá vivendo aquilo junto e são dias que você passa só ouvindo Lady Gaga. Todas as pessoas que estão lá naqueles arredores estão lá para aquilo, então tem uma coisa muito coletiva que eu sinto que me motivou de ir lá e de viver essa experiência que é uma cidade inteira temática para um show de um artista.
Já minha amiga Maria Carol, que entrou na faculdade junto comigo e hoje trabalha como tatuadora, disse que foi na loucura do momento, uma mistura da ocasião com a vontade de fazer algo e, como mencionado por Roberto, estar presente num dia mais do que especial para a história do entretenimento brasileiro.
MARIA CAROL: Misturou a empolgação de ver um show de graça da Lady Gaga, passear no Rio de Janeiro, tirar férias com a minha namorada, enfim, compramos a passagem e fomos (...) quando eu vi ela entrando no palco foi um refresco pra alma sabe? Eu sou fã da Lady Gaga desde que eu tinha uns 7 ou 8 anos, esse rolê dela vir pra cá e se apresentar de graça, depois daquele show cancelado anos atrás, é uma coisa que se eu contasse para aquela Maria criança que ela com 23 anos ia conseguir ver sua diva pop favorita, ela não ia acreditar.
O show mencionado por Maria Carol é um trauma pros fãs até hoje. Em 2017, ela seria headliner do Rock in Rio, sua primeira apresentação em solo brasileiro desde 2012, porém, no dia que deveria pegar o avião a caminho do Brasil, ela foi internada no hospital com fortes dores devido à sua fibromialgia, doença que manifesta dores no corpo todo, principalmente na musculatura. Os fãs já estavam acampados na porta do hotel que a cantora ficaria hospedada quando ela publicou em seu Twitter (hoje X) e Instagram a famosa frase: Brasil, I’m devastated. Ela então foi substituída na noite do evento pela banda britânica Maroon 5 e nunca mais voltaria a se apresentar por aqui, isto é, até esse mês.
Minha outra amiga, Mariana, estava junto com Roberto no decorrer dessa viagem, de Curitiba até o Rio de Janeiro. Ela me contou estar esperando por essa oportunidade de ver sua ídola desde os 9 anos de idade e que estaria presente no Rock in Rio que a artista cancelou sua participação em cima da hora.
MARIANA: Foi um momento muito traumático pra mim, eu chorei muito e desde então achei que ela nunca mais ia voltar. Eu era muito nova para a turnê de 2012 então não pude ir, já faziam 13 anos da última vez, mas quando saiu a notícia ela estaria em Copacabana, de graça, eu sabia que tinha que ir. Eu iria até mesmo se fosse pago o show, era meu sonho ver ela cantando ao vivo.
Ela também pediu para desmitificar boatos sobre o Rio de Janeiro e a segurança do show, deixando claro que não é que a cidade não seja perigosa, mas que o esquema de segurança montado foi eficaz, com a revista para entrada na areia da praia ela não sentiu medo em nenhum momento do show em si.
Os 5 atos de Lady Gaga em Copacabana
A apresentação então começou, cessando a espera de anos de muitos fãs e dos mais de 2 milhões de pessoas na areia da praia. O ato I, denominado Of Velvet and Mice (algo que traduziria para De Veludos e Ratos) teve início com um vídeo da cantora, o mesmo apresentado no Coachella deste ano. Numa plataforma que parecia um vestido de 5 metros, “Bloody Mary”, música do álbum Born This Way, foi a escolhida para ser a primeira canção. O interessante da escolha é que a música voltou aos holofotes dez anos após o lançamento, numa versão acelerada que estorou no Tiktok. Ainda na mesma altura, cantou “Abracadabra”, mesclando os dizeres Copacabana no ritmo eletrônico da música.
Começou a descer daquele vestido e bradar as cores da bandeira nacional com o sucesso Judas, na sequência, cantou “Scheiße” e “Garden of Eden” em um corset preto e um cenário vivo, tocando guitarra e interagindo com seus dançarinos. Para fechar o primeiro ato, “Poker Face” trouxe um xadrez gigante para o palco do Gagacabana, com os mesmos dançarinos se transformando em peças e simulando uma partida. Um pouco antes, a já emocionada Gaga agradeceu a presença do público.
O ato II, And She Fell Into a Gothic Dream (e Ela Caiu Num Sonho Gótico), começou numa caixa de areia, posicionando Gaga ao lado de esqueletos e cadáveres para as duas primeiras canções, “Perfect Celebrity” e “Disease”, no que o jornal O Globo definiu como ópera cyberpunk. A cantora então saiu da sua caixa e, enquanto se montava numa armadura de prata, cantou o hit “Paparazzi” e subiu numa segunda plataforma, que simulava uma sacada, onde colocou uma bandeira do Brasil e chamou um fã para ler uma versão traduzida de uma carta escrita por ela, onde agradeceu novamente os fãs, principalmente pela paciência no aguardo de sua volta, que não acontecia desde 2012. Na sequência, cantou “Alejandro” ainda embargada e fechou o ato com a nova “The Beast”.
Para começar o terceiro ato, The Beautiful Nightmare That Knows Her Name (o Lindo Pesadelo Que Sabe Seu Nome), Gaga voltou ao palco com um vestido preto e azul, ao lado de dançarinas com orelhas parecidas com cobras e destaque para sua banda nas músicas “Killah” e “ZombieBoy”. Deu continuidade na apresentação com uma jaqueta amarela e o sucesso global “Die With a Smile”, ainda que não tenha tido a participação de Bruno Mars, e “How bad do U want me?”, quando seus dançarinos reapareceram com camisas da Seleção Brasileira de Futebol.
O penúltimo ato, To Wake Her Is To Lose Her (Acordá-la é Perdê-la), começou com a canção “Shadow of a Man”, do seu lançamento mais recente, Mayhem, num ritmo pop, eletrônico e dance que animou os mais de dois milhões de fãs para o próximo hino da cantora, “Born This Way”, sem esquecer antes de agradecer e encorajar seus apoiadores LGBTQ+ a serem quem eles são, sem medo de represálias e preconceitos. Esse momento de contato com os fãs, que contou com uma breve passagem pela grade, foi o mais pedido pelo meus amigos que estavam presentes para que estivesse presente nesse texto, notando o carinho que Lady Gaga tem com seus little monsters brasileiros.
Para encerrar o ato IV, Gaga emendou uma sequência de três músicas no piano, a recente “Blade of Grass”, o sucesso “Shallow”, do filme Nasce Uma Estrela, que a premiou com um Oscar, e “Vanish Into You”, também lançamento, homenagem ao amigo Tony Bennett. O show teve um intervalo de 10 minutos até o começo do ato final, Eternal Aria of the Monster Heart (Ária Eterna do Coração Monstro), dedicado exclusivamente para seu maior hit comercial, a música que a alavancou a patamares imortais, “Bad Romance”, que chegou a ser por um tempo o vídeo mais visto da história do Youtube. O show histórico acabou com o público aclamando em plenos pulmões e leques batidos numa sintonia que provavelmente mexeu com as estruturas cariocas. A única crítica escutada, se é que podemos chamar disso, foi a exclusão de fases importantes da carreira de Lady Gaga, principalmente Artpop, Joanne e Chromatica, mas isso não diminui em nada a magnitude de apresentação e a marca nos futuros livros de história.
E então, quanto custa para entrar pra história?
Por fim, para finalizar, a volta. Perguntei para aqueles mesmos dois amigos, Roberto e Maria Carol, se valeu a pena estar lá e, sei que pode parecer contra-intuitivo, mas vi a semelhança na resposta deles a torcedores de clubes de futebol que viajam para ver o time em uma final. Ambos passaram por perrengues que envolvem a multidão (afinal, dois milhões de pessoas é muita gente), mas ambos também não se arrependem de ter feito parte de algo histórico. Ao contrário de Mariana mais cedo, Maria me respondeu em maiores detalhes os eventos traumatizantes para ela, desde a ultra lotação em todos os pontos da praia até o empurra-empurra na hora da revista. Ela disse que abdicou de um lugar melhor (próximo do segundo telão) pois havia muita briga o tempo todo por motivos banais, então voltou para a orla e achou um ponto mais tranquilo (no telão 5), ainda que o som estivesse mais baixo e a imagem desconexa.
MARIA CAROL: Na hora de ir embora pro lugar que estávamos hospedados, sentei em um bar e fiquei esperando até 4 da manhã para diminuir o fluxo de gente, mesmo assim peguei o metrô lotado mais 200 reais de Uber. Mas aproveitei de verdade na hora do show, ela realmente deu um espetáculo.
Num viés bem mais positivo, Roberto e Mariana disseram que valeu cada segundo, uma experiência vivida uma vez na vida apenas, de passarem anos e sempre vir a lembrança. Roberto mesmo, sempre me fala do Primavera Sound de 2022, dos shows que presenciou naquele momento, naquele lugar, um evento único que traz o prazer de falar que estava lá. O Gagacabana, para quem foi, se tornará sobre estar presente, sobre o sentimento de pertencimento que pouco mais de dois milhões podem afirmar.
ROBERTO: Se valeu a pena? Pra C*******, uma experiência apoteótica, de passar anos e poder falar que eu fui, eu era uma das 2 milhões de pessoas naquela praia, naquele show, naquele instante em Copacabana, no show histórico da Lady Gaga.
realmente só quem foi sabe... histórico.
amei muito essa matéria