Hip hop, música eletrônica e futebol: o que é o grime?
Criado na Inglaterra, aperfeiçoado no Brasil
Se você está por dentro da cena do hip hop, tanto nacional quanto internacional, é muito provável que já tenha esbarrado em músicas com batidas aceleradas, agressivas e metálicas, que parecem ser uma mistura de diferentes ideias e estéticas. Na verdade, é isso mesmo, e esse som também têm nome: grime.
O ritmo londrino está ganhando cada vez mais destaque no cenário mainstream da música internacional, com artistas proeminentes dessa vertente destacando-se ao lado de grandes nomes do pop e do hip hop. No Reino Unido, o ritmo é dominante e já lançou nomes de sucesso como Skepta, JME e Stormzy — seu álbum GANG SIGNS & PRAYER, por exemplo, alcançou o topo das paradas de sucesso do país na semana de seu lançamento, em 2017, enquanto Skepta já colaborou com conhecidos rappers como Kid Cudi, Drake e ASAP Rocky.
No Brasil, o gênero está em evidência na cena underground por uma série de fatores, sendo o mais significativo entre eles a forte identificação dos rappers locais com o streetlife de Londres. Mas além disso, o som ganha espaço com artistas como Vandal, considerado por muitos o "pai do grime brasileiro", LEALL, que mescla em suas músicas elementos de funk, grime e drill, e Febem, Flezzus e CESRV, os responsáveis pelo astronômico BRIME!.
Com seu ritmo pulsante e agressividade, o grime transformou-se, de certa forma, em um fenômeno cultural, e hoje tentaremos iluminar as origens dessa vertente e o que torna suas batidas fragmentadas tão distintas. Para facilitar sua imersão nessa história, a Repeteco preparou uma playlist com as principais faixas dos artistas e álbuns aqui citados.
Soundsystem e rádios pirata
Os primeiros registros do grime surgem no início dos anos 2000, emergindo de uma cultura única de soundsystem, dancehall, UK garage e músicos underground de Londres. Estes artistas utilizavam-se das poucas ferramentas disponíveis para combinar hip hop, ragga, jungle e drum and bass, criando um som visceral e afrontoso, que começou a dominar as casas noturnas e as rádios piratas da capital inglesa.
Sim, é inegavelmente britânico. No entanto, não se deixe enganar, as principais influências do grime têm raízes em contextos muito específicos e culturalmente diversos. O próprio conceito de soundsystem é originário da Jamaica, onde as pessoas se reúnem em qualquer lugar que seja possível conectar caixas de som e fazer música — em qualquer tipo de aparelho sonoro, seja ele caseiro ou profissional. É como as rodas de samba no Brasil, os bailes funk ou, voltando ao tema, os sets de grime.
Tanto o jungle quanto o drum and bass, apesar de terem surgido nas áreas periféricas de Londres, também incorporam muitas características da música jamaicana, resultado da concentração de imigrantes nessas regiões. Em termos sonoros, são marcados por batidas aceleradas, combinando elementos do ragga, dub, funk e outros sons característicos.
Todos esses elementos entrelaçaram-se com a cultura de rua de Londres, que reflete as experiências e os interesses de artistas que transitam entre o coração pulsante da capital e a periferia. Como resultado, a identidade do grime absorveu a paixão pelo futebol, o skate e a moda sportwear, características facilmente reconhecíveis que constituíram a principal razão pela qual artistas brasileiros se identificam com a vertente.
Por ser tão rico, sonora e culturalmente, o grime rapidamente conquistou popularidade no cenário underground. No entanto, essa ascensão não foi alcançada sem esforço. Muito se deve ao trabalho incansável dos coletivos de artistas, e à produtividade de rádios piratas, como a Rinse FM, Deja Vu, Major FM e outras, que desafiaram o mainstream ao promover o som de artistas locais, desempenhando um papel fundamental na propagação do ritmo.
Mas além da popularidade, o grime também atraiu inimigos. Em 2008, durante o ápice de seu crescimento, a Polícia Metropolitana de Londres introduziu o Formulário 696 - um documento que exigia que organizadores de eventos e proprietários de casas de shows o preenchessem, detalhando quais DJs e artistas se apresentariam no local. Além disso, o formulário solicitava uma descrição do estilo musical a ser tocado e detalhes sobre os grupos étnicos que provavelmente estariam presentes.
Inclusive, faixas como "Pow! (Forward)", do músico Lethal Bizzle, foram banidas de diversas casas de shows e rádios, sob a alegação de que poderiam incitar tumultos e revoltas. No entanto, em novembro de 2017, após muitos anos de oposição, a Polícia Metropolitana de Londres anunciou que o uso do Formulário 696 seria abolido.
Mas finalmente, após amadurecer muito e lançar diversos sucessos como Boy in Da Corner de Dizzee Rascal, Greatest Hits de Skepta, Famous? de JME, Treddin’ On Thin Ice de Wiley, e inúmeros outros álbuns notórios dos anos 2000, o grime atravessou o oceano e estabeleceu-se como uma força na cena musical.
140 BPM
Beleza, mas o que realmente distingue o grime do rap, do trap e de outros subgêneros do hip hop? Sonoramente caracterizado pelo uso de beats 2-step e breakbeats a 140 batidas por minuto, o gênero também se destaca pelas rimas de 8 compassos dos MCs. Mas, embora as letras sejam importantes, o verdadeiro charme e autenticidade do ritmo está em suas batidas fragmentadas e descompassadas.
Construído a partir de beats que variam entre o metálico e o reminiscente de instrumentos de percussão, a aceleração acaba por ser seu principal elemento de diferenciação. Isso muitas vezes desafia MCs acostumados com batidas mais tradicionais, dificultando sua capacidade de acompanhar e rimar em cima de batidas de grime.
“O grime soa como se tivesse sido feito para uma academia de boxe, onde os lutadores têm muitos socos para dar, mas pouco espaço para se mover.”
Ilustra o jornalista e crítico Sasha Frere-Jones em sua matéria True Grime, ao The New Yorker em 2005.
No cerne do gênero, suas letras retratam as noites de hostilidade, diversão e prazer vividas nas periferias de Londres, em seus clubes, boates, praças e parques. Essa atmosfera é intensificada pelo forte sotaque inglês e dos imigrantes, embora este seja um traço distintivo mais associado ao grime britânico.
Versão brasileira
O grime brasileiro, frequentemente chamado apenas de brime, surgiu no país também nos 2000. Inicialmente, DJs incorporaram elementos do UK garage e do dubstep em seus sets, mas posteriormente MCs começaram a explorar as sonoridades desse ritmo em suas próprias músicas.
A faixa "Cidadão Comum Refém", de MV Bill e Chorão, é declaradamente influenciada pelo som que Dizzee Rascal estava produzindo na Inglaterra na mesma época. No entanto, o grime começou verdadeiramente a ser produzido no Brasil em 2007 pelo pioneiro Vandal, quando o artista soteropolitano lançou a mixtape Fayaka Steppaz, trazendo a estética do grime, em uma forte mistura com o ragga, para a cena brasileira.
Porém, após mais de uma década de relativa obscuridade, o grime começou a ganhar popularidade no Brasil através do trabalho de outros deslumbrados artistas do hip hop nacional e de selos dedicados, como o excelente Brasil Grime Show. Vandal consolidou sua posição com diversos singles lançados e com os viscerais álbuns TIPOLAZVEGAH MIXTAPEH e PHODI$MO MIXTAPE, VOL. 1, que foram essenciais para revitalizar o ritmo por aqui.
Um pouco mais tarde, no Rio de Janeiro, o jovem LEALL lançou seu primeiro álbum, Esculpido a Machado, que foi aclamado tanto pelo público quanto pela crítica. Contando com faixas poderosas como "Pedro Bala" e "Encomenda”, o álbum foi indicado em quatro categorias no Prêmio Nacional RAP TV 2021.
Correndo por fora em São Paulo, Febem, Fleezus e CESRV surgiram como verdadeiro entusiastas do ritmo, lançando diversas mixtapes colaborativas e individuais entre 2019 e 2021. Esses esforços culminaram na versão deluxe de BRIME! em 2023. O álbum, na verdade, é uma grandiosa celebração e um reflexo do grime nacional. Contém colaborações de MCs de todo o Brasil, como Sodomita, SD9, VND, Well, Mirral ONE, Ravi Lobo, Pivete Nobre, Coruja Bc1 e Luccas Carlos, criando uma fusão efervescente de funk, rap, música eletrônica e futebol.
Onde sua bolsa Gucci
Daria um churras na favela
Do jeito que era pra ser
Como vendem pra TV
Só que não, dessa vez
Vão assistir nós em Paris
Muitos dos processos de identificação e produção do trio Febem, Fleezus e CESRV estão registrados no filme Say Nuttin, que documenta a jornada do grupo até a Inglaterra, destacando as semelhanças entre o streetlife de São Paulo e Londres. O documentário também explora o grime como um agente unificador, capaz de reunir pessoas de contextos completamente diferentes sob um guarda-chuva de arte, esporte, letra e som.
No final das contas, seria impossível fazer jus e mencionar todos os artistas que estão na vanguarda do grime brasileiro, considerando que o gênero está constantemente evoluindo em formas cada vez mais surpreendentes no país, em interação com diversas subculturas, ritmos, ideias e vivências.
Mas para não deixar a oportunidade passar, vale destacar o trabalho incrível de diniBOY, Lorac Lopez, Jovem MK, Baga, AKhali, BAKKARI, e de tantos outros MCs que não foram mencionados nesse texto.
Vai pensando
Às vezes, para compreender completamente um fenômeno, é necessário observá-lo a partir de um distanciamento histórico, após seu desenvolvimento completo. O grime é, sem dúvida, um desses casos, assim como foi o trap há alguns anos, lançando artistas que hoje dominam o mainstream.
Não sugerindo que o grime seja o "novo trap", como muitos afirmam por aí, especialmente porque são gêneros que operam a partir ferramentas e propósitos completamente diferentes. No entanto, certamente vale a pena acompanhar de perto a vertente, pois além de ser incrivelmente cativante, não seria surpreendente se um novo fenômeno musical surgisse desse estilo.