Homem com H e a representação cinematográfica de Ney Matogrosso
Uma homenagem a um dos maiores nomes da música brasileira
Como você deve ter visto recentemente, a Revista Repeteco também abraçou a sétima arte no seu editorial, mas nada impede que essa transição envolva a análise de filmes sobre músicos ou música, então aproveitei essa deixa para falar de um dos filmes nacionais mais em alta no ano de 2025, “Homem com H”, dirigido e escrito por Esmir Filho e que esteve nos cinemas até junho (e agora já está disponível na Netflix).
Assim como na música, o cinema gosta de se dividir em gênero e subgêneros, cada qual com suas características, que discutiremos mais a frente. Não é novidade, mas filmes biográficos, ou cinebiografias, costumam ser aqueles filmes no formato Wikipédia, de maneira cronológica, comprimidos em duas horas e que destacam os pontos positivos daquela pessoa em destaque e esquecem das suas partes mais baixas. Há muitos anos que esse subgênero tem sido um dos favoritos de uma parte crítica, principalmente em temporadas de premiação como Oscar, pois basta uma boa ambientação e um final feliz para o sucesso do chamado crowd pleaser (que numa tradução direta seria agradável ao público).
Chegando em terras brasileiras, o gênero de filmes biográficos também não é novidade, mas tem chamado a atenção de produtores que querem retratar histórias reais. Só nos últimos anos tivemos “Nosso Sonho” (2023), sobre Claudinho e Bochecha, “Meu Nome é Gal” (2023), sobre Gal Costa, “Mamonas Assassinas – O Filme” (2024), entre outras inúmeras cinebiografias de personalidades culturalmente históricas. O que diferencia, então, Homem com H das demais?
O filme foi anunciado ainda em fevereiro de 2025, enquanto o Brasil aguardava o prêmio de “Ainda Estou Aqui” no Oscar e aumentava a procura de filmes nacionais. Com Jesuíta Barbosa escalado no papel principal, o longa teve sua estreia internacional em Paris, antes mesmo de chegar nos cinemas brasileiros e, por mais que conte com estratégias de praxe do gênero, traz um ar de dignidade e honestidade a Ney Matogrosso, uma das figuras mais importantes da música brasileira.
Aviso: ainda que seja uma história biográfica com fatos reais, é de bom tom falar que teremos no texto spoilers do filme.
Sangue Latino - A Balada de Ney Matogrosso
Se você é minimamente antenado nas mídias sociais, sabe que esse subtítulo é a tradução direta do nome do filme para lançamento internacional, pois “Homem com H” traduzido ficaria sem sentido, então a escapatória da produção foi uma referência a um dos maiores sucessos da carreira do cantor brasileiro. Diga-se de passagem, ambos os títulos foram muito bem pensados, mas trouxe a informação para começar de fato a destrinchar de maneira crítica o filme.
Tudo começa em 1949, um Ney criança que em suas primeiras imagens sofre da repressão do pai. Após uma amostra de uma futura apresentação com seus pais na plateia, o filme foca na infância de um filho que não pode ser quem ele é perto do pai. Interpretado por Davi Malizia, Ney tem o apoio da mãe, mas é forçado a ficar longe da arte, aliás, o contraste entre Rômulo Braga, no papel do pai, e Hermilia Guedes, como mãe, está no olhar, na postura, nas reações de tudo que o filho faz. Ainda nesse primeiro momento, acontece a primeira passagem de tempo e a transição para Jesuíta Barbosa no protagonismo do filme, na cena em que ele resolve sair de casa após seu pai, Antônio, dizer que não quer ter um filho artista e homossexual.
Chegamos em 1959, na fase que Ney, ainda de Souza Pereira, se alista na aeronáutica. Esse momento serve para mostrar o referencial teórico do diretor Esmir Filho, que tem alusões a “Beau Travail” (1999), de Claire Dennis, além do primeiro despertar do artista com seu amigo, o também soldado Cato. A atuação de Jesuíta Barbosa consegue expressar bem o conflito entre o querer e o poder que perpassa as primeiras fases da vida de Ney. Ver o amigo ir embora para sua casa faz com que ele deixe o exército, não antes de se provar para seu pai, de patente mais alta e ainda em Campo Grande.
Estamos em 1961 e Ney se muda pra Brasília, onde entra num coral em busca do seu sonho de ser artista. A sua breve participação serve para destacar a sua voz e seu primeiro relacionamento, com Eugênio, interpretado por Danilo Grangheia, que recentemente atuou na novela das 21, “Mania de Você”. Tudo acaba durando muito pouco, as desavenças entre os dois já viram destaque da trama, que se separam após Eugênio tentar tirar sua própria vida com remédios.
O próximo time skip acontece e estamos em São Paulo, 1967, onde Ney começa a trabalhar com teatro, ainda que mostre apenas seu trabalho como aderecista da companhia, que nem ganha nome. O destaque é a chegada de seu pai em visita, que o tenta convencer a se mudar para Ilha Solteira, agora que ambos estão aposentados. Ainda enfrentando a repressão do pai, Ney reafirma seu desejo de virar artista, custe o que custar. O filme então passa para 1972, em mudança para o Rio de Janeiro, onde ele agora mora com amigos e conhece João e Gerson, que futuramente seria a gênese do grupo Secos e Molhados. Agora oficialmente Ney Matogrosso, sobrenome do pai, e sem medo da censura que perdurava na época, eles gravam “Rosa de Hiroshima” e começam com as apresentações ao vivo, em que pela primeira vez vemos Ney com sua pintura corporal e figurino exótico.
Esse primeiro momento em que a música ganha destaque no filme é quando as coisas desaceleram, o Secos e Molhados entra na mesma vibe que o seu vocalista, mas com receios relativamente homofóbicos. O filme reedita a icônica apresentação do grupo na TV Tupi em 1973, um marco da música brasileira dos anos 70. O que vem na sequência é justamente o fim do grupo, após a possibilidade de um enrosco judicial sobre direitos financeiros e uma discussão entre Ney e João. O final abrupto do trio acelera o início da carreira solo do cantor, uma fase ainda mais excêntrica que não se sai bem de primeira com os jornalistas.
Em 1975, aquela apresentação prevista no começo do filme ganha cena, com seus pais na plateia, sua mãe orgulhosa e seu pai sem reação. Após o embate com a imprensa, o filme destaca a crise monetária que encontrava a carreira de Ney Matogrosso naquele momento, até se reencontrar com o público e sua autenticidade, com a música “Bandido Corazón”. A turnê pelo Brasil tem dois destaques na sequência, a tentativa de censura pelo governo do Recife e o reencontro com Cato em Vitória, que tem a mesma tensão dos primeiros instantes do filme. O filme então retorna para o Rio de Janeiro, o sucesso do músico e a sua libertinagem sexual, apesar da ditadura operante. Quem ganha destaque é seu assessor, Luisinho, que está sempre presente com ele, como seu amigo mais próximo. É também nesse trecho que o filme conhece um dos seus personagens mais importantes, Cazuza, interpretado por Jullio Reis.
A conturbada relação entre Ney Matogrosso e Cazuza tem início em 1979, após os dois se conhecerem na praia. Cazuza vivia uma vida intensa, com destaque para seu vício em drogas, que Ney não acompanhava com tamanha intensidade (de acordo com o filme). O “primeiro” fim, ainda que momentâneo, se dá após o vocalista do Barão Vermelho sumir por três dias e voltar, ainda alterado, acompanhado de outro usuário, que faz Matogrosso prontamente o expulsar de casa. O filme corta abruptamente para 1980, no estúdio de gravação, onde ele é convencido por seu produtor a gravar uma música nova, assessorado por Gonzaguinha e com a mistura de forró, “Homem com H”, que foi um sucesso atemporal e a canção que dá nome ao longa.
Na sequência, ainda em 1980, Ney Matogrosso conhece o que ele mesmo destaca como maior amor de sua vida, o médico Marco de Maria, interpretado por Bruno Montaleone. O relacionamento dos dois é bem aberto, houve até mesmo a liberação de um envolvimento de Cazuza, que nesse momento posterior já teria se reconciliado com Ney. O filme então passa para 1984, na apresentação de Matogrosso no Circo Tihany, cantando “Pro Dia Nascer Feliz”, música eternizada por Cazuza. A sequência direta é a cena do intérprete se reencontrando com seu pai no leito de morte dele, onde sua mãe revela que depois de todo embate prévio, após aquele show com os dois na plateia, seu pai finalmente reconheceu o talento do filho, no silêncio de sua casa.
A morte de Antônio é acompanhada de uma performance de “O Mundo É Um Moinho”, música de Cartola, e dita o ritmo do final do filme, com um tom de despedida e de tragicidade. Pulamos para 1987, com o anúncio da morte de Luisinho, vítima do vilão do último ato da obra: o HIV. Também soropositivo, Cazuza é visitado por um Ney preocupado com o futuro, buscando aproveitar a presença de seus amigos. O cantor é convocado a dirigir a última apresentação do músico carioca, que nesse momento, já no final da sua vida, está abatido em cena e performa “O Tempo Não Para”. O filme continua no tom de despedidas e uma certa crueldade fora dos palcos na vida de Ney Matogrosso ao mostrar que o parceiro dele, Marco, também testou positivo para HIV, que leva a uma das cenas mais tristes do longa, a despedida dele em 1993, seguida de uma performance ao vivo de “Pedra de Rio”.
O filme chega na cena final, que é duas em uma, o momento em que a ficção encontra a realidade. O cantor estava comprando uma propriedade que era seu sonho de consumo e descobre com a pessoa que o acompanha que um rio passa por ela: o rio Matogrosso. Quem está no rio esperando a câmera aproximar é o próprio, vivo e bem, no que corta para uma apresentação sua no Allianz Parque em 2024, num estádio lotado.
Seco, molhado e autêntico
Bom, como toda cinebiografia, “Homem com H” segue algumas figuras de linguagem cinematográfica do gênero que por vezes enriquece a experiência mas na maioria acaba caindo em clichês. A comparação que eu tinha quando assisti foi a mais recente que vi, “Um Completo Desconhecido”, dirigido por James Mangold.
O filme estrelado por Timothee Chalamet e indicado ao Oscar conseguiu chamar atenção a carreira de Bob Dylan através de um recorde específico, entre 1961 e 1965, a chegada do músico a Nova Iorque e a sua “evolução” musical, que culmina no uso de guitarras elétricas. O filme norte-americano não se preocupa em falar de todos os hits ou álbuns da carreira dele, o que difere radicalmente de “Homem com H”.
O longa dirigido por Esmir Filho tenta abordar toda a vida de Ney Matogrosso, começando pela literal infância e encerrando com trechos reais de sua apresentação no Allianz Parque, em 2024. É claro que parece mais interessante saber um pouco de tudo, mas acaba sendo apenas uma pincelada em vários pontos da carreira, acelerados. Falando nisso, para conter a vida toda do artista em 2 horas e 10 minutos, a infância e adolescência dele não parece ter muita importância, principalmente as cenas que não envolvem seu pai.
Um outro estereótipo do gênero, que aconteceu no sucesso brasileiro recente “Ainda Estou Aqui” (2024), é a tentativa de ausentar culpados da culpa. Se no filme de Walter Salles isso acontece com o militar que diz não concordar com a repressão de Eunice Paiva, aqui acontecem duas vezes, duas cenas de militares sendo “contra” seus próprios atos. Independente de ser verdade ou não, a oposição do pai à repressão do regime militar brasileira e o censurador elogiando o show após seu chefe ameaçar Ney Matogrosso são exemplos de banalidade do mal, ideia de Hannah Arendt que tem um fundo bom mas foi usado em meios errados, para dizer o mínimo.
Falando em comparações, é de se elogiar o zelo da produção com a sexualidade de Ney Matogrosso, ao contrário de “Bohemian Rhapsody” (2018), que difama da vida pessoal de Freddie Mercury e coloca toda a culpa de seu declínio na sua promiscuidade. “Homem com H” honra a vida de um artista conhecidamente exigente, explora seus envolvimentos amorosos, dos mais tranquilos aos conturbados, sem condená-lo ao ostracismo moralista.
Por fim, é preciso elogiar o corpo de atores do longa, é claro que o trabalho de Jesuíta Barbosa é o destaque, tanto corporal como vocal (ainda que as músicas sejam claramente dublagem), o visual impressiona muito e as semelhanças com Ney Matogrosso são impecáveis. Para além disso, Jullio Reis impressiona como Cazuza, Bruno Montaleone como Marco de Maria idem. É um filme muito bom, com os principais sucessos de um dos cantores mais importantes da história do Brasil e que teve procura de um público genuíno nas salas de cinema apesar da pouca liberação dos grandes cinemas, que focaram em deixar a maior parte de salas para “Branca de Neve” live-action ou “Lilo e Stitch” live-action, sucessos forçados da Disney que fazem lobby para se manterem em maioria, de salas e horários.
Para Ney Matogrosso,
Por ousar a ser livre.
Achei o filme raso e uma grande egolombra. Antes focasse em um periodo especifico da vida do Ney, fica pulando de tempos em tempos e nao aprofunda em momento algum. Tudo superficial. Ponto pra otima atuação do Jesuita, mas apenas isso mesmo.