Imaginário, luzes e groove: Desvendando Clara Bicho
Reflexões criativas com uma das promessas de Belo Horizonte
As tardes quentes de verão se desenrolam sob o sol ardente, queimando suavemente a pele, enquanto memórias de antigas tristezas perdem-se no passado, ao lado da pessoa que você tentou ser. À noite, envolta pelo calor abafado das luzes urbanas, você dança sob a lua solitária, mergulhando em um mundo de contemplação, aceitação, imaginação e memória.
Esses são apenas alguns dos temas explorados na breve, porém encantadora, discografia de Clara Bicho, que pinta um cenário doce e surreal com suas músicas etéreas e dançantes. A jovem mineira tem se destacado nas redes sociais com sua descontração e trabalho, produzido no conforto de seu quarto em colaboração com seu irmão, Gabriel Campos, membro do coletivo Geração Perdida.
Com dois singles lançados, Clara acumula mais de 30.000 streams no Spotify e uma base sólida de ouvintes. Recentemente, no último dia 12 de Março, realizou sua estreia nos palcos no evento Tranquilo BH, conquistando ainda mais visibilidade na agitada cena da música.
Seus dois singles, "Tarde" e "Luzes da Cidade", soam como as memórias embaçadas de alguém que evoluiu, que superou seus momentos mais difíceis e agora reflete sobre eles com um sentimento de alívio, clareza e maturidade. Sua lírica, repleta de poesia, intimidade e ternura, surge principalmente de seus trabalhos como escritora, mas também de referências que estão para além da música. Em entrevista à Equipe Repeteco, comenta:
CLARA BICHO: Uma das coisas que eu mais gosto é literatura, e isso influencia muito em como eu escrevo, tanto nas letras das músicas quanto no livro de poemas que lancei em 2020. Muitas das letras que tenho criado, principalmente as do EP, têm trechos dos meus poemas. Além disso, como também sou artista visual, existe uma conexão para mim entre o som e as imagens. Sinto que isso influencia muito na estética das músicas. É engraçado, pode parecer algo viajado, mas há uma sinestesia entre imagens, sons e desenhos que fiz; tudo casa no final.
Antes de arriscar-se na música, Clara já havia explorado diversas formas de expressar-se com arte. Em 2020, escreveu e lançou o livro de poesias "Bicho" em colaboração com sua amiga Eduarda Duarte. Além disso, dedica-se também à confecção de joias em sua loja Coisa Bicho, e teve outras de suas obras expostas em eventos de arte, como a mostra "Mulheres Que Fazem Coisas", em Belo Horizonte. Pode soar inusitado alguém com essa trajetória migrar de repente para a música mas, sobre isso, Clara explica:
CLARA BICHO: Eu toco desde criança. Aos 8 anos, aprendi a tocar piano, e na adolescência inventei que queria tocar guitarra, porque achava muito mais maneiro. Também sempre gostei de cantar, mas nunca expus isso para as pessoas. Com 17 anos, comecei a compor músicas, mas sem pretensão de gravar ou publicar, pois achava isso algo muito distante da realidade das pessoas "comuns". Mas quando meu irmão, Gabriel, lançou sua primeira música e se juntou à Geração Perdida de Minas Gerais, em 2019 ou 2020, passei a ser muito influenciada por ele e pelos outros membros do coletivo. Percebi que pessoas comuns, com outros trabalhos, podiam fazer música, cada um à sua maneira, e isso me inspirou muito. Tudo casou com um momento bem merda da minha vida, o que me motivou a produzir algo para mim mesma, e acabou sendo a música.
Mas equilibrar tantas produções criativas com as responsabilidades de um emprego convencional pode ser um desafio para qualquer artista independente. É preciso gerenciar cuidadosamente o tempo, reservando momentos específicos para a criação artística, mesmo diante de uma agenda ocupada. Conta:
CLARA BICHO: Isso, na verdade, é motivo de ansiedade para mim. Não é fácil conciliar, já que trabalho, tenho várias obrigações que não têm nada a ver com arte e passo o dia inteiro ocupada com diversas coisas que não posso deixar de fazer. Então, o tempo que uso para fazer minhas músicas é aquele que sobra mesmo. Por exemplo, sexta-feira à noite, deixo de sair para ficar em casa enfurnada no meu quarto, editando música, desenhando ou qualquer outra coisa do tipo. A mesma coisa nos finais de semana e durante a semana, quando chego em casa e fico até tarde da noite trabalhando nisso. Gostaria de ter mais tempo para me dedicar a essas coisas, mas por enquanto estou dando o meu jeito com as condições que tenho, e na verdade isso me deixa realizada de muitas maneiras.
Em todo esse processo, Clara conta com ajuda de seu irmão, Gabriel Campos, músico, produtor e membro da banda Memórias de Ontem. Diz que a dinâmica fraternal e a conexão forte entre os dois faz da produção musical um processo orgânico, mas admite já ter ouvido alguns "se vira" por parte de seu irmão gêmeo.
CLARA BICHO: Tarde e Luzes da Cidade foram produzidas de forma bastante caseira e despretensiosa mesmo. Os arranjos foram meio improvisados, pegando os instrumentos, falando "vamos fazer mais ou menos assim" e gravando tudo na hora. Cada uma das músicas foi gravada em mais ou menos 5 horas, tudo muito orgânico. No meu EP, estou produzindo algumas músicas totalmente sozinha, o que tem sido uma experiência muito boa, apesar de ser um pouco por necessidade, sabe? Foi o jeito que deu, mas estou pegando gosto pela coisa. Aprendi muito com meu irmão, já que ele produz a maioria de suas músicas. Trabalhar com outras pessoas também tem sido muito interessante; aprendo bastante. Na hora de pensar nas músicas, tanto eu quanto Gabriel somos muito sistemáticos, bem virginianos mesmo, e o processo acaba sendo prático e rápido. A gente se dá super bem, pensamos muito parecido e, na verdade, não ficamos discutindo ou brigando como irmãos, sabe?
Um aspecto intrínseco na personalidade de Clara Bicho é sua forte conexão com a realidade acelerada da internet. No Twitter (ou X), divulga seu som com muito bom humor, além de estar sempre em contato com o público, mostrando-se acessível e genuinamente feliz em trocar tweets com seus ouvintes.
Compartilha memes, semaninhas do Last.fm, faz recomendações de músicas e é muito aberta sobre todo o seu processo de criação. No entanto, recentemente, rompeu a barreira do virtual para realizar um show ao vivo, e compartilha um pouco sobre sua experiência nesse ambiente interpessoal:
CLARA BICHO: Eu não tinha a intenção de fazer um show antes do lançamento do meu EP, mas surgiu um convite do Tranquilo BH e eu obviamente aceitei. Tive pouco tempo para ensaiar, e nunca havia ensaiado minhas próprias músicas, então tive que aprender a tocá-las no formato de show. Estava nervosa, pensando que havia prometido e agora precisava entregar. Felizmente, deu tudo certo; foi uma experiência incrível e já estou pensando e me organizando para fazer shows com banda. A interação com o público foi muito gratificante; ver tantas pessoas que não me conheciam ou que eu não conhecia falando que gostaram foi incrível.
Realizar um show ao vivo em Belo Horizonte tão cedo na carreira é, sem dúvida, uma prova da qualidade do trabalho de Clara Bicho, especialmente considerando o quão agitada é a cena musical da capital mineira. No entanto, estar imerso nesse cenário pode ter também suas desvantagens, tanto práticas como temáticas. Explica:
CLARA BICHO: Pensando nas pessoas da minha faixa etária que produzem música de forma independente, sinto-me feliz por estar inserida nesse meio, principalmente no meio dos meus amigos. É muito bom porque a gente se inspira e se apoia muito, o que faz da minha experiência na "cena" bastante particular. Mas além disso, por mais que a gente esteja no sudeste, há uma clara desvantagem em não fazer parte do eixo Rio-São Paulo, que é o principal polo de oportunidades para arte; muitos conhecidos meus acabam indo para lá. Outro aspecto que me chama a atenção é a questão de gênero, que, assim como em outras experiências e lugares, não é diferente aqui em Belo Horizonte. A maioria das pessoas envolvidas na música são homens, enquanto as mulheres acabam sendo minoria tanto em número quanto em destaque, e isso cria ambientes um tanto hostis, é foda. Mas por outro lado, há muitas propostas de artistas de diversos lugares aqui, o que acaba sendo muito rico.
Também parece rico o futuro de Clara Bicho na música. Com um EP prometido para ser lançado ainda nesse semestre, ela expressa uma vontade enorme de continuar produzindo. Apesar de sua breve experiência, Clara parece aprender muito através da prática e se diverte imensamente ao longo desse processo. Dessa forma, a experimentação destaca-se como um dos principais objetivos para o futuro de sua carreira.
CLARA BICHO: As músicas que estarão no EP conversam muito com Tarde e Luzes da Cidade, embora tenham algumas diferenças, claro. Isso estava me preocupando, pois queria manter um trabalho e uma estética coesos. Mas além do EP, estou produzindo alguns singles, e um deles já será lançado em abril. Esse, por exemplo, é um house que fiz em colaboração com o Linguini, um artista muito foda daqui de Belo Horizonte. Fora outras músicas que estão para sair, como um shoegaze que fiz em colaboração com uma banda que ainda não posso revelar. Eu aproveito esses singles para explorar algumas ideias diferentes, e às vezes me pergunto se as pessoas vão gostar, mas estava com vontade de fazer e fiz.
Eu quero dançar
Clara agora se prepara para lançar o seu tão comentado EP, e enquanto percorre seu colorido e estelar caminho na música, torna-se evidente que sua personalidade transcende notas e letras. A menina mineira parece destacar-se aos poucos como uma voz autêntica para a diversidade e criatividade da música independente, e seu futuro promete novas experiências sonoras, novas histórias compartilhadas e horizontes ainda inexplorados.
Eu tropecei na barra da
Minha própria saia
Não vou voltar
Não tem porquê
Eu devo é cantar
Costuma-se dizer que quanto mais pessoal é uma obra de arte, mais criativa ela é. Quase que de forma inconsciente, Clara Bicho aplica esse princípio em suas músicas. Muitas de suas visões, tão particulares e subjetivas, parecem emergir diretamente de um mundo onírico, onde sonhos se entrelaçam com pesadelos, culminando, ao fim, em memórias profundas.
Com poemas, desenhos e sons enraizados em suas próprias experiências, Clara conseguiu cativar inúmeras pessoas, provenientes das mais diferentes origens e contextos, sem qualquer pretensão — produzindo organicamente, aprendendo durante todo o processo e divertindo-se ao máximo. É curioso como um trabalho tão singular, tão intrinsecamente ligado à história única de uma jovem, acaba refletindo e retratando uma geração tão ansiosa, deslumbrada e apaixonada.
E no fim, os “bichos” de Clara Bicho acabam sendo muito humanos.
uh! uh! 👏 é clara bichooo! uh! é clara bichoooo 👏
muito obrigada 💗🥺