Kairós: o tempo nas mãos de Pecaos
Uma odisséia audiovisual entre o passado, presente e futuro
Já faz um tempo que o rapper Pecaos vem conquistando o seu espaço na cena, destacando-se com lançamentos marcantes e participações em importantes shows e festivais. A sua presença em eventos de peso como o Coolritiba e o Mad in Brazza ajudou a solidificar o seu status como um dos nomes mais influentes do rap na cidade. Além disso, oportunidades como abrir o show do Emicida em Curitiba, em sua turnê AmarElo – A Gira Final, ampliaram ainda mais o seu alcance, levando o seu som para além da bolha do underground.
No entanto, a sua relação com a música começou bem antes. Aos onze anos, já escrevia pequenos textos sobre os seus sentimentos, e aos quatorze, inspirado pelos Racionais MCs, compôs o seu primeiro rap. Ao mesmo tempo, envolveu-se com a cultura de rua por meio do skate, transformando as suas vivências em letras quando voltava para casa. Aos dezessete, inspirado pela Batalha da Menô, no bairro do Boqueirão, performou as suas composições ao público pela primeira vez. A partir daí, lançou trabalhos viscerais como Parece Morte, Mas é Só a Vida e Minha Zona, além de faixas como "Porradão de Muay Thai" e "Boom Boom Bap" mais recentemente.
Pecaos apresenta um estilo de escrita radicalmente emocional e texturizado, repleto de paralelos, referências e metáforas que dão uma dimensão brutal às suas letras. Essa abordagem, junto de seu vocal característico, chamou a atenção do público e, em 2023, também da Bagua Records, uma das gravadoras mais importantes da cena underground nacional.
Essa linha do tempo profundamente específica é responsável por moldar a sua relação com o rap e, por consequência, com a cidade ao seu redor. Aqui, o meu papel como redator não é dissecar a sua história, mas destacar como essa trajetória o inspirou a escrever um álbum que é, acima de tudo, sobre o tempo. Em seu primeiro disco, Kairós, lançado na última sexta-feira (27/09), Pecaos explora os caminhos que moldaram a sua carreira e questiona o que poderia ter acontecido se tivesse tomado outras decisões, resultando em um trabalho intenso, sentimental e reflexivo.
O tempo dos homens
Na estrutura linguística da civilização moderna, comumente usamos uma única palavra para representar a noção de “tempo”. Contudo, os gregos antigos a distinguiam entre dois termos: chronos e kairós. Enquanto o primeiro se refere ao tempo cronológico ou sequencial, que é mensurável e de natureza quantitativa, kairós aborda o tempo em sua dimensão qualitativa, representando aquele instante indeterminado em que algo significativo ocorre — a vivência do momento oportuno.
Kairós simboliza eventos aleatórios que têm o poder de transformar vidas de maneira irreversível, seja para o bem ou para o mal. Esse conceito é o ponto de partida do disco de Pecaos, que utiliza-se do termo grego como uma lente para revisitar o passado e imaginar futuros alternativos. No entanto, essa experiência de dez faixas vai além da música — Kairós foi lançado junto de um curta-metragem dirigido por Vanderlei Lopes, que contempla toda a duração do álbum, reforçando com imagens a história que o rapper deseja contar.
“Kairós é uma linha do tempo fora do tempo que conhecemos.
Aquele que está subordinado ao relógio está fadado a viver a personificação do tempo dos homens. Chronos.”
Escreve em seu Instagram. Somado a isso, o álbum carrega uma produção cuidadosa de veteranos como Brasileiro, Caco, Cassol e DJ Caique, esse último conhecido por suas colaborações com artistas renomados, incluindo Rashid, Doncesão e Nocivo Shomon. Beleza, mas o que acontece em Kairós?
Fiz esses remendos virar alta costura
O disco abre com “Papai Já Volta”, um relato íntimo da infância de Pecaos, marcada por mudanças — caixas de papelão amassadas, caminhões e a ausência de um ponto de ancoragem. As imagens de uma casa vazia, impregnada de fé e histórias, contrastam com a referência que ele mesmo se tornou para a comunidade da Vila Lindóia, tudo isso envolto por um vocal estridente e tambores suaves. Logo em seguida, em “Mais Intenso Que Precipitado”, Pecaos reflete sobre o seu crescimento pessoal e artístico ao mesmo tempo que confronta as contradições de sua infância.
Esse é o momento em que Pecaos, no curta-metragem, comparece a um velório onde os seus amigos choram, apenas para chocar-se com quem está dentro do caixão. Na faixa seguinte, “Forasteiro”, a obsessão pelo tempo manifesta-se através de imagens incessantes de relógios, refletindo a ideia de voltar ao passado e corrigir erros. Cenas de um Pecaos mais jovem, com cabelo longo e em contato pleno com o mundo ao seu redor, se entrelaçam com quem ele é hoje, mais maduro e reconhecido, sugerindo que, depois do sucesso, ele lida com uma versão mais fria de si mesmo.
Em segundos, passaram-se anos
Em minutos, fui da água para o vinho
Em horas, era outro caminho
Em dias, eu já tava sozinho
Em semanas, eu não era o mesmo
Em meses, nada era o que é
Em “Eu Conheço o Pedro”, Pecaos coloca-se em uma sessão de terapia, revelando suas vulnerabilidades, como a dificuldade em confiar nas pessoas, o hábito de esconder inseguranças e frustrações, e o medo de se abrir emocionalmente. Na faixa seguinte, “Zoológico”, com um instrumental pesado e um coral etéreo, ele ilustra o seu próprio sequestro por um homem usando a máscara que ele mesmo costumava usar — uma representação de seu próprio sequestro emocional. Nessa faixa, ele rima com raiva sobre as incoerências da indústria musical, enfatizando que a sua arte é uma questão de sobrevivência, não de glamour.
Nas duas faixas seguintes, “DDBMSDSES” e “Mr. Freeze”, Pecaos retorna às ruas da sua cidade, mas agora rodeado por amigos e bens de luxo, contrastando com a representação sóbria e melancólica em Papai Já Volta. Aqui, ele celebra a originalidade e autenticidade das pessoas ao seu redor, exaltando bairros como Sítio Cercado, Uberaba e Boqueirão, simbolizando a Zona Sul de Curitiba. No entanto, esse auge é abruptamente interrompido por um tiroteio nas proximidades do bar onde ele e seus amigos se divertem, seguido pelo trágico acidente de moto que leva à sua morte.
“Como Se Eu Não Soubesse” revela que o velório visto no início do curta era, na verdade, o enterro do próprio Pecaos, e é aqui que a narrativa das linhas temporais ganha destaque. Em cima de um beat fúnebre, ele reflete sobre como, em meio ao luxo e poder, muitos artistas perdem de vista o que realmente importa. Com luto em sua voz, ele questiona o valor de uma única ascensão enquanto todos outros continuam vivendo uma vida de dificuldades. O rapper é enterrado em seu bairro, mas o filme retrocede, apresentando um final alternativo.
A última faixa do disco, “Pedras Podem Aprender a Dançar”, encerra o álbum com um tom esperançoso, celebrando a beleza da simplicidade e das pessoas que tornam a vida significativa. Nesse ponto, o curta abandona a narrativa dramática e apresenta uma versão mais leve e positiva, com Pecaos feliz e em harmonia com aqueles ao seu redor. O filme é preenchido com imagens de bastidores, sugerindo que, apesar das dificuldades, essa foi a linha do tempo escolhida pelo rapper, mas que pequenas mudanças poderiam ter desviado drasticamente o seu caminho.
Foi uma torção, vai ter que pôr gelo
Segura a emoção, irmão, nois vai dar um jeito
Quando a bagunça se espalha eu vou lá e ajeito
O ciclo natural das mentes
Há algo em Kairós que remete aos melhores trabalhos do gênero. É um disco imersivo, que constrói uma narrativa complexa a partir de múltiplas perspectivas e camadas. A união impactante entre música e filme, transformando o álbum em uma experiência multimídia, amplifica a mensagem de Pecaos de maneira magistral. O fato de tudo isso ser realizado de forma independente, sem sacrificar a qualidade ou o ritmo do projeto, é uma prova do talento e da autenticidade desse artista.
Pecaos, em meio a um mar saturado de hits superficiais, emerge apostando em ideias profundas e em sensibilidade. Em Kairós, ele revela uma maturidade rara, explorando temas como vida, tempo e os percalços da experiência humana com uma honestidade crua. Sua capacidade de transformar dor e introspecção em arte o coloca em um patamar único, reafirmando a sua posição como uma voz única do rap nacional.
A arte do pecaos é impecável, sou um admirador das músicas do mano, álbum foda!!!
Matéria incrível sobre o artista!
esse álbum está surreal, vou passar um tempo estudando, e refletindo e aprendendo sobre. Obrigado repeteco pelo texto. Obrigado Pedro.