Never Enough e o "novo" Turnstile cinematográfico
Quando a consciência da vida adulta começa a bater nossa porta
Crescer não é uma escolha diária, amadurecemos com a sequência de acontecimentos que marcam a passagem de tempo da vida. Quando jovens, temos vontade de se aprofundar na imensidão que são as possibilidades de viver, deixamos as responsabilidades para outra hora e focamos no que gostamos, jogos, músicas, rolês diferentes. Porém, uma hora, nas nossas costas pesa o fardo de ter que responder pelas próprias escolhas. Fica difícil conciliar o rock com o trabalho e o habitual da vida adulta.
A música normalmente é vista como esse gancho, um alívio da rotina estressante para quem é trucidado pelo convívio social, mas ela também é produto, no sentido comercial da coisa e no lado laboral, tendo em vista que ela é produzida por alguém. Músicos também foram um dia crianças sonhadoras, seres humanos que podem passar pelo processo de amadurecimento, mudanças de hábitos, o que não significa perder o âmago do seu estilo. Mudar não significa algo necessariamente ruim, nem bom, é apenas mudança.
Normalmente associados com o hardcore punk, a banda de Baltimore, Turnstile, traz um som um pouco mais experimental para seu estilo de rock alternativo, ainda mantendo a essência que os tornaram conhecidos no cenário hardcore. Entre as letras do ritmo agora mais melódico da banda, estão a preocupação com o tempo e o cansaço que é viver em sociedade, o estilo de vida em que nada nunca está bom ou satisfatório.
Turnstile é hardcore!
Como gosto de fazer, vou apresentar a banda que a Pitchfork descreve como a “maior do cenário hardcore contemporâneo”. A banda estadunidense surgiu em 2010, fruto da união de Brendan Yates, Brady Ebert, Sean Cullen, Franz Lyons e Daniel Fang. O grupo de Baltimore lançou dois EPs que cimentaram o lugar deles na cena de hardcore punk americano: Pressure to Succeed (2011) e Step 2 Ryhthm (2013). O sucesso foi o suficiente para o lançamento do primeiro álbum de estúdio do Turnstile, Nonstop Feeling, em 2015, além da primeira turnê, ainda apenas em solo estadunidense.
Depois de se estabelecer no cenário e da primeira turnê, o grupo acompanhou o New Found Glory na sua sequência de shows nos Estados Unidos, mas antes de dar o próximo passo na carreira, Sean Cullen, guitarrista, deixou a banda para a chegada de Pat McCrory. Após um ano de adaptação, o Turnstile lançou um terceiro EP, Move Thru Me, que pela primeira vez fez a banda figurar na Billboard entre bandas de rock mais escutadas. Em 2018, um novo patamar foi alcançado com o disco Time & Space, que levou a banda para shows na Europa e Ásia de maneira inédita, além do topo das paradas Heatseeker, área da Billboard para artistas novos.
Contudo, o lado multifacetado da banda ainda viria a ter mais destaque, com o primeiro EP pós-pandêmico do grupo, Love Connection, que veio acompanhado de um curta dirigido pelo vocalista Brendan Yates. Na metade de 2021, o Turnstile lançou seu terceiro álbum, GLOW ON, que foi um sucesso entre público e crítica, figurando no top 10 melhores discos do ano da revista Rolling Stones. Em 2023, o grupo foi indicado ao Grammy em três categorias: Melhor música de rock e Melhor performance de metal, com BLACKOUT, e melhor performance de rock, com HOLIDAY, mas antes do sucesso nas premiações, o outro guitarrista, Brady Ebert, saiu da banda, sem nenhuma reposição fixa. Mas voltando aos destaques, a banda realizou o sonho de sair em turnê junto com o blink-182, que fazia apresentações com Mark Hoppus, Tom Delonge e Travis Barker pela primeira vez em cerca de 10 anos. Os shows de abertura pro blink foram festejados pela banda através de zines distribuídas aos fãs.
Turnstile é... cinema?
O ano de 2025 chegou para o Turnstile como um meteoro. Em março, a banda começou a promover a estreia do novo álbum, Never Enough, mas não apenas como música, mas um “álbum visual”. O termo pode parecer estranho a primeira vista, pois é algo extremamente contemporâneo, mas a semântica entrega a ideia, um filme que acompanha um lançamento musical, entrelaçando ambas categorias de mídia. O principal exemplo de álbum visual nos últimos anos foi da cantora Beyoncé, que fez uso dessa estratégia no seu álbum homônimo de 2013 e no Lemonade, de 2016.
No rock, a ideia de álbum visual não é nova, mas sofreu adaptações com o tempo. Os Beatles fizeram uso de filmes atrelados a álbuns onde nem sabemos qual foi prioridade do grupo, em Hard Day’s Night (1964), Help! (1965), Magical Mystery Tour (1967) e Yellow Submarine (1968), ainda que os dois últimos tenham focos diferentes dos primeiros, que funcionavam com histórias roteirizadas estrelando os garotos de Liverpool.
Como prévia do Never Enough, o Turnstile lançou um vídeo de 55 segundos anunciando a estreia do álbum visual no aclamado festival de cinema de Tribeca, como parte da competição oficial, em junho deste ano, que ocorreu semana passada e, como ninguém da Repeteco mora em Nova Iorque, não tivemos acesso ao resultado final, mas a recepção dos fãs foi positiva, de acordo com as opiniões em aplicativos como Twitter (ou X) e Letterboxd.
Turnstile é música!
Falamos sobre a estratégia de divulgação do novo álbum do Turnstile, mas precisamos chegar no conteúdo em si. Antes do lançamento, a banda confirmou Meg Mills como segunda guitarra da banda, se tornando membro fixo após participar de turnês. Entre o começo de abril e o final de maio foram 4 singles lançados, incluindo a faixa que dá nome ao álbum. Em 6 de junho de 2025, veio ao mundo o quarto álbum do Turnstile, com 14 músicas e 45 minutos de duração.
A primeira canção é a faixa homônima, NEVER ENOUGH, que traz um pouco do hardcore punk do Turnstile misturado com o melódico que seria característico do álbum. O refrão repete o nome da música várias vezes como um mantra: nunca ser suficiente, apesar de se esforçar o máximo, a tônica da vida adulta. Nos agregadores digitais, a gravação acompanha um videoclipe, que destaca a identidade visual do álbum, a cor azul clara que leva a capa, e uma edição espetacular, utilizando de um colorgrading vibrante e trechos de imagens vivas, entre natureza e moshpits.
SOLE é a segunda faixa, que lembra mais o Turnstile original, com um break digno de hardcore e um ritmo mais acelerado, enquanto a letra te lembra do lado individualista da sociedade contemporânea, você não tem onde se escorar. I CARE é a antítese da última música, tanto no sentido musical, como no lírico. É uma canção que tem instrumentais que lembram Terno Rei, fazendo uso de synth e distorção, enquanto fala de se preocupar com esse alguém hipotético.
DREAMING segue no hardcore melódico, com um ritmo que parece de fanfarra antes e depois do refrão. No geral, todas as letras até então seguem o mesmo molde de verso – refrão – verso – refrão – pós-refrão que consiste na repetição de palavras. LIGHT DESIGN não segue necessariamente essa regra, mas ainda é semelhante, isso contando com um synth e vocal digno de post-punk. Ambas as faixas encaram o medo de viver uma rotina aborrecida pelas obrigações do cotidiano, o que coincide com a música seguinte, DULL, que significa chato em tradução literal. Dessa vez, o eu lírico se defronta com sua própria consciência, ele está se tornando aquela pessoa que ele nunca quis ser.
Voltando ao ritmo acelerado de antes, SUNSHOWER glorifica o tempo vivido em que se pode fazer as coisas que quer, mas a falta de sentimentos o preocupa. A faixa de pouco menos de 4 minutos marca a exata metade do álbum, sendo dividida em dois momentos, um de cantoria hardcore e outro de introspecção, apenas instrumental. LOOK OUT FOR ME, que foi um dos singles lançados anteriormente, também conta com o ritmo conhecido da banda de Baltimore, mas adiciona isso a 6 minutos de música, repetindo o formato da última canção, dividido nos dois momentos destacados, ainda que tenha um sample de The Wire aqui e o seu fim traz uma ponte para a próxima faixa, a breve CEILING, que serve um caráter mais experimental para a banda, com vocais abafados que lembram as músicas do Tame Impala.
Falando em Tame Impala, um amigo meu que é fã de Turnstile me disse que a próxima canção, SEEIN’ STARS, é uma música do grupo de Kevin Parker disfarçada. A faixa, que conta com backing vocals de Hayley Williams, do Paramore, foi lançada como single em conjunto com a próxima do álbum, BIRDS, o que mostra a mescla de estilos do quinteto, visto que uma não se assemelha a outra. Se na primeira o melódico é mais pop e a letra fala de ver estrelas, a posterior sai como um desabafo hardcore, digna de mosh, assim como no clipe lançado em 30 de abril.
Na mesma pegada da última faixa, SLOWDIVE volta a dialogar com a dificuldade da vida adulta, em que não se afogar é uma luta diária. Acho legal falar, caso haja a curiosidade, que não tem nada a ver com a banda Slowdive além do nome compartilhado. TIME IS HAPPENING continua com a preocupação, ao ter como ponto central a passagem de tempo e um destaque para o instrumental, de volta com os vocais abafados. A última faixa, MAGIC MAN, chega novamente num ritmo mais calmo e mantendo o estilo de edição vocal da música anterior. No fim, o interlocutor ganha um toque, para prestar atenção no mundo em que ele vive e não deixar que a rotina e o cansaço vençam a luta diária.
A recepção, dos fãs e da crítica
Assim como tudo que vive em constante mudança, as reações do Never Enough foram ambíguas. Para os especialistas em música, o álbum foi uma quase unanimidade, tendo notas altas em publicações reconhecidas como a Kerrang, que deu nota máxima. Já Rolling Stone e Pitchfork atribuíram classificações boas, acima da média, mas que poderia ter sido melhor feita essa transição experimental.
Por fim, dois amigos meus fãs de Turnstile me disseram que não sabem como digerir o álbum ainda, que por mais que tenham gostado do resultado, não teve nada que saltou os olhos no sentido mais hardcore, ainda que a produção musical e visual seja um destaque. Um deles me disse que não entendeu o apelo mais pop de diversas faixas, que vai levar um tempo pra se acostumar, enquanto isso, o outro amigo gostou muito da parte estética, mas que no âmbito musical e instrumental prefere o álbum anterior, Glow On (2021).