Diante de um momento em que observamos lançamentos pouco originais, que tentam seguir os mesmos padrões pré-estabelecidos de sucesso e lucro impostos pela indústria musical e por artistas que reproduzem esse comportamento, faz-se válido falar de exemplos opostos.
Estreando o pop nas páginas da Repeteco, nesta edição trazemos uma das artistas mais inventivas do gênero. Ethel Cain, a persona de Hayden Anhedönia, não apenas desafia as convenções do pop contemporâneo, mas também contorna as expectativas da própria indústria. Seu álbum de estreia, o Preacher’s Daughter, é um dos melhores exemplos de como ser criativo e original dentro de um sistema que parece subestimar a aura do artista.
Mesmo que nosso foco seja no que acontece fora da indústria, é importante reconhecer quando artistas conseguem alcançar popularidade sem se render às exigências do capital e às fórmulas padronizadas de sucesso. Se essas contradições contribuem para a imagem de uma cena pop banal e pouco criativa, iremos provar que essa não é a realidade e que há muito para se explorar dentro do gênero.
Ainda criança, Hayden Silas Anhedönia desenvolve interesse pela música ao participar de um coro de igreja no período em que seu pai era diácono de uma igreja batista. Depois, aos 8 anos, começa a estudar piano clássico com influência de músicas cristãs. Aos 16, deixa a Igreja e o cenário que a oprimia, mas as influências dessa época permanecem, tanto em sua estética quanto nas letras e sonoridade.
É só em 2018 que Hayden assume a persona de Ethel Cain. A artista gosta de dizer que foi possuída por Ethel e assim começou a criar uma narrativa complexa em torno dessa personagem.
Ethel e sua criadora têm muito em comum. Ambas são mulheres que partiram sozinhas, deixando as suas comunidades cristãs opressivas: Ethel cresceu no Alabama, enquanto Hayden veio de uma cidade rural na Florida chamada Perry, onde foi educada em casa e criada na religião batista. No entanto, a artista conduz sua persona para um terreno muito mais sombrio e trágico.
O suprassumo da história de Ethel está presente no álbum Preacher’s Daughter, lançado em 2022. A partir de um cenário gótico no sul dos Estados Unidos, ficamos imersos em uma narrativa sonora intensa — que aborda temas de doutrinação religiosa, violência sexual, isolamento e trauma familiar.
Jesus can always reject his father
But he cannot escape his mother's blood
He'll scream and try to wash it off of his fingers
But he'll never escape what he's made up of
“Family Tree (Intro)” é a faixa que abre o disco. Mais curta e crua, é um relato que condensa os temas a serem abordados nas canções seguintes. É um pequeno resumo das experiências e reminiscências de traumas de Ethel Cain que transpassam para o álbum como um todo, mas especialmente nesta faixa. A voz de Ethel ecoa como numa igreja vazia.
The neighbor's brother came home in a box
But he wanted to go, so maybe it was his fault
Another red heart taken by the American Dream
“Eu escrevi essa música como uma expressão da minha frustração com todas as coisas que a ‘Adolescente Americana’ deveria ser, mas nunca teve nenhuma chance real de se tornar.”
A faixa seguinte, “American Teenager” pode até causar estranhamento pelo contraste sonoro em relação a canção de abertura. É ambientada em uma pequena cidade fictícia do Alabama, Shady Grove, onde o legado do falecido pregador Joseph Cain está nas mãos de sua filha, Ethel. Ela enfrenta a glamourização do estilo de vida americano e se sente deslocada em sua cidade natal. A jovem, aos poucos, começa a perder a fé em Deus e afoga suas mágoas no álcool.
Para além da história, Ethel canta letras que ironizam o sentimento patriota americano. A crédito de curiosidade, a faixa — descrita por ela como fake pop e anti guerra —, ironicamente se fez presente na lista de melhores canções de 2022 feita pelo ex-presidente dos Estados Unidos Barak Obama.
And I still call home that house in Nebraska
Where we found each other on a dirty mattress on the second floor
Where the world was empty
Save you and I
Retomando o clima melancólico, em “A House In Nebraska” Ethel pensa em um amor do passado que deixou a cidade antes dos acontecimentos do disco. Ela reflete sobre os bons momentos que compartilharam nesse local mais afastado de Shady Grove. Os acordes de piano e o coro de guitarras conduzem a sonoridade enquanto Ethel Cain conta a história dessa curta cadeia de desencontros com um parceiro misterioso.
Seguindo para “Western Nights”, testemunhamos outro relacionamento, dessa vez mais problemático. Reconhecendo a obsessão que sente por esse parceiro, Ethel demonstra que ainda não consegue fugir da paixão. A jovem se compromete a apoiá-lo em qualquer coisa, não importa o desespero e o medo que sinta e o pouco que lhe resta para oferecer a ele.
In the corner
On my birthday
You watched me
Dancing right there in the grass
I was too young
To notice
As próximas faixas, “Family Tree” e “Hard Times” revisitam o trauma familiar de Ethel, confrontando o abuso sexual que sofreu por parte de seu pai. Ao lembrar-se desse passado, foge de casa.
A sonoridade inspirada no country de “Thoroughfare” traz continuação à fuga. A faixa substituí a intensidade das guitarras por vocais poderosos, acompanhados de violões e gaitas. Durante os 9 minutos de duração, testemunhamos o percurso de Ethel após sair de casa. Na beira da estrada, encontra-se com um novo homem, que viria a se tornar mais um parceiro romântico. Ele a leva à Califórnia.
You wanna fuck me right now
You wanna see me on my knees
You wanna rip these clothes off
And hurt me
“Gibson Girl” desenterra os problemas desse novo relacionamento. O título é uma referência a Charles Dana Gibson e às mulheres que ele desenhou. Aqui, as letras fortes mostram Ethel já na Califórnia, sendo prostituída pelo namorado enquanto faz uso de drogas. Ela, aos poucos, começa a perder o senso de realidade.
A sucessora,“Ptolemaea”, é a faixa mais pesada do disco. A canção expõe uma tradução sonora das alucinações que Ethel passa a enfrentar e narra seu confronto com a escuridão que sente ao redor.
Após esse clímax violento, o disco se divide em duas composições instrumentais. “August Underground” tem seu título baseado no homônimo filme de terror americano dirigido por Fred Vogel. Por meio da atmosfera etérea e explosiva criada pelos sintetizadores, vocalizações e guitarras baixas, Ethel ambienta o ouvinte para os próximos, e trágicos, passos de sua história.
Já “Televangelism” equilibra a agonia da antecessora com uma espécie de melodia celestial e esperançosa. Esta é a trilha sonora da ascensão de Ethel Cain ao céu.
What I wouldn't give to be in church this Sunday
Listening to the choir, so heartfelt, all singing
God loves you, but not enough to save you
Em seguida, em “Sun Bleached Flies” Ethel parece refletir algumas ações de sua vida. Ela lamenta seu distanciamento da fé e da comunidade. Pensa em como irá combater os fatos que mancharam sua existência e como se livrará da dor do passado e do presente. Por fim, Ethel Cain faz as pazes com a morte e pensa na família, na vida e no homem que ela nunca deixou de amar.
You devour like smoked bovine hide
How funny, I never considered myself tough
You're so handsome, walking over to me now
A jornada finalmente termina em “Strangers”. Após ser assassinada e canibalizada pelo homem com o qual se relacionou na Califórnia, Ethel se despede de sua mãe do além-túmulo. Nesta faixa, somos levados a um lugar de contemplação e encerramento, trazendo à tona os temas complexos e intensos que permearam todo o álbum.
Ethel, ou Hayden, mostra que é possível trazer originalidade à indústria musical. Ao emplacar um álbum conceitual como Preacher’s Daughter, a artista não apenas se destaca na cena pop, mas também a enriquece profundamente. Sua abordagem convida o público a explorar novas narrativas e experiências musicais. Se atualmente muitos artistas optam pelo caminho mais seguro em busca de sucesso comercial, Ethel Cain é prova da importância de permanecer fiel à própria visão e voz criativa.