Glitter combina com rock n’ roll? Aqui na Repeteco acreditamos que sim. E há um excelente gênero musical para provar nosso ponto.
O Glam Rock (abreviação de Glamour Rock, também chamado de Glitter Rock) nasce no Reino Unido como uma ramificação do rock britânico do fim dos anos 60. Musicalmente, é possível defini-lo como uma reação à cultura hippie e ao rock psicodélico da época, na tentativa de recuperar as estruturas mais simples do rock n’ roll dos anos 50. No entanto, o glam também procurava trazer de volta o culto à figura do rockstar e aplicar um rock pesado, alto e forte, inspirando-se nas gravações dos anos 60.
No livro O Que é Rock, o pesquisador Sílvio Anaz detalha melhor o contexto em que o gênero surge, junto dos artistas expoentes do movimento.
“Em mais uma reação à simplicidade e aos temas pastorais do rock hippie e à seriedade do rock progressivo, surgiu um estilo que buscava ser glamoroso, divertido e teatral. O glam rock ou glitter rock trouxe cor, deboche e desempenhos cênicos para os palcos. Dançante, andrógino e extravagante, o glam rock nasceu com o trabalho de Gary Glitter, David Bowie, T Rex e Roxy Music, na Grã-Bretanha, e do Kiss e do New York Dolls, nos Estados Unidos”
Com as palavras do autor, é possível perceber que o glam rock consegue ir além da própria música. O gênero tornou-se sinônimo de um estilo visual marcado pelo uso de roupas e maquiagens extravagantes e andróginas, ou seja, permitiu maior liberdade de expressão artística. O sucesso do glam como um gênero musical contribuiu para uma reestruturação dos padrões estéticos, consequentemente influenciando a moda e estabelecendo-se, inclusive, como um fenômeno social, expandindo as barreiras da sonoridade.
E por ser tão amplo, é muito difícil contemplar em um texto todos os artistas que fizeram parte da história do glam rock. Por isso, criamos uma playlist mais abrangente, com vários nomes essenciais para conhecer o gênero.
Os pioneiros: Marc Bolan e David Bowie
É sempre complicado apontar pioneiros dentro de um movimento, por si só, tão precursor. No entanto, creio que aqui seja válido dizer que T. Rex, a partir do disco Electric Warrior, de 1968, foi a banda embrionária do glam rock.
Marc Bolan, fundador e vocalista do grupo, ficou marcado por ser um dos primeiros a combinar uma performance divertida e teatral com o visual inovador de roupas femininas, sapatos coloridos, glitter, casacos de pele, rímel, penas e cartolas.
Porém, como ficará claro ao longo desse texto, é impossível falar de glam sem lembrar de David Bowie. Isso porque o artista, em especial com o disco The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars, foi um dos responsáveis por aperfeiçoar ainda mais esse estilo — tanto em sonoridade quanto em estética —, influenciando uma gama de novas bandas a seguirem o caminho desbravado por Marc Bolan e consolidando o movimento musical como contracultura.
Por estarem envolvidos no mesmo meio, Bowie e Bolan nutriram uma grande amizade — infelizmente interrompida pela trágica morte repentina do vocalista do T. Rex, em 1977. A relação entre os dois, mesmo que relativamente curta, trouxe muitos frutos para a cena que ajudaram a desenvolver e até para o rock de maneira geral. “Lady Stardust”, um dos maiores clássicos de Bowie, foi escrito para Marc Bolan, e descreve os traços andróginos e transgressivos do amigo.
People stared at the makeup on his face
Laughed at his long black hair, his animal grace
The boy in the bright blue jeans
Jumped up on the stage
Lady Stardust sang his songs
Of darkness and disgrace
Teatralidade, transgressão e performance
O jornalista Simon Raynolds, autor do livro Shock and Awe: Glam Rock and Its Legacy, comentou, durante uma palestra, sobre a característica que distingue o glam de outras ramificações do rock.
“A teatralidade é uma grande parte do glam, e isso não fazia parte do rock, especialmente no final dos anos 60, quando não havia muito o que ver porque se tratava apenas de música. Em reação a isso, pessoas como David Bowie e Alice Cooper trouxeram todos os apetrechos do show business: os adereços, os figurinos e coreografias com dançarinos no palco – todas as coisas da Broadway se tornaram parte do rock”
Além das influências teatrais, a construção estética do gênero também pautava-se, muitas vezes, em referências que iam do surrealismo à ficção científica. Bowie é um dos melhores exemplos desse caso. O artista ficou eternizado com seu personagem andrógino Ziggy Stardust, um alienígena rockstar.
Toda essa extravagância e exagero que os artistas aplicavam às roupas, conceitos e performances, tem origem na quebra total com os valores da época, inclusive com o que era feito dentro da própria contracultura. O glam é pioneiro em trazer cor para o rock ‘n roll e propor uma quebra de padrões estéticos como nunca antes havia sido feito. A ideia era confundir, polemizar e bagunçar os conceitos de gênero, criando uma confusão visual para chocar o conservadorismo da época.
Glam no Brasil
As influências do gênero britânico também reverberaram no Brasil, especialmente nos anos 70 e 80. O grupo Secos & Molhados, e em especial a estética que Ney Matogrosso adota até hoje, são talvez os mais óbvios exemplos das influências visuais andróginas do glam, mas também são sinônimo da luta pela liberdade de expressão em tempos opressivos.
A parceria de Rita Lee com a banda Tutti Frutti no disco Fruto Proibido também é exemplo disso. Adotam a sonoridade do glam rock da primeira metade da década 70 enquanto expelem uma estética igualmente transgressora para a época ditatorial em que o Brasil se encontrava. E Edy Star, com o álbum Sweet Edy, de 1974, condensa todo o glamour, sensualidade e audácia do gênero, não perdendo em nada para os lançamentos ingleses.
Legado
Lembra de quando falamos que o glam também se interessava pelo resgate da figura do rockstar? Então, é daí que partimos. David Bowie foi um dos artistas que mais obtiveram sucesso nessa missão, a partir de suas tantas reinvenções artísticas a cada novo projeto, criando diferentes personas ao longo dos anos de estrelato — e que acabaram tornando-se parte marcante de sua carreira.
Esse conceito criado por Bowie é usado até hoje. Muitos nomes do mainstream, e até de fora dele, aderem à ideia de mudar a personalidade frente as câmeras (ou ao palco) de acordo com seu mais recente lançamento musical. Se hoje os artistas têm algo como eras, devem grande parte disso à fase glam de David Bowie.
Mas esse fato torna-se apenas uma curiosidade quando paramos para pensar que o glam, na verdade, nunca acabou. Popstars dos anos 2000 como Kesha e Lady Gaga, e até atos mais atuais como Chappel Roan carregam muito do glam consigo, mesmo que inconscientemente. E claro, o movimento também continuou vivo durante os anos 80, com Boy George, Annie Lennox, Siouxsie Sioux. E nos anos 90, com Suede, Placebo e Poison, por exemplo.
As influências do glam rock já são parte inerente da música, da moda, e do comportamento social como um todo. Seja com a ampliação dos limites da performance musical, com o desafio aos papéis de gênero ou simplesmente com a celebração da diversidade e da autoexpressão, o glam conseguiu plantar raízes e dar frutos a capítulos mais coloridos na história do rock e da sociedade como um todo.