Os caminhos até Agnès Varda no Olhar de Cinema
Uma conversa com Gabriel Borges sobre o processo de curadoria do festival
Conheci Agnès Varda através de Os Catadores e Eu. Não acho que essa seja a escolha mais óbvia para ser a primeira obra assistida da diretora, mas para mim foi um ótimo começo. Só depois de um tempo, cheguei no clássico Cléo das 5 às 7, que já representa outra face do cinema de Varda. Lembro que este mudou um pouco minha visão de nouvelle vague por finalmente ver mulheres tomando as rédeas tanto da direção, quanto da diegese.
Varda é bem poderosa nesse sentido de servir como um espelho, criar um ambiente propício para identificação. E isso não para na perspectiva feminina. Ela parecia ter um olhar treinado para encontrar beleza naquilo que fica invisível, muitas vezes, num primeiro olhar da sociedade. Isso se reflete em seu estilo autoral, documental e autobiográfico — e na maneira em que criou um jeito único de fazer cinema a partir do real.
Justamente por oferecer tantos caminhos pelos quais explorar sua filmografia, imagino que deva ser uma grande responsabilidade delinear um recorte dessas obras para a exibição. E foi isso que a equipe de curadoria do Olhar de Cinema, Festival Internacional de Curitiba, precisou fazer. Um total de 10 obras de Agnès Varda foram selecionadas para integrar a mostra chamada Olhar Retrospectivo, que todo o ano oferece um panorama de algum diretor. Entre curtas, longas e documentários, os nomes escolhidos foram: A Opéra-Mouffe (1958), As Praias de Agnès (2008), Cléo das 5 às 7 (1962), Documentira (1981), La Pointe Courte (1955), Os Catadores e Eu (2000), Saudações aos Cubanos (1964), Tio Yanco (1967), Ulysse (1983) e Uma Canta, A Outra Não (1977).
É sobre esse serviço, ao mesmo tempo, árduo e prazeroso, que a Repeteco irá tratar ao longo desse texto — com base na conversa que tivemos com Gabriel Borges, co-diretor artístico e um dos curadores dos longa-metragens do festival.
Escolhas
Dentro do festival, nada é aleatório ou organizado por acaso. As obras representam o cuidado de um pensamento curatorial articulado para atravessar cada uma das exibições. Com as mostras, o festival se dedica a colocar os filmes em diálogo direto com o público e com o próprio campo cinematográfico, promovendo um tipo de celebração que é, também, uma provocação.
Há, portanto — além de jogar luz e fomentar o pensamento crítico de estreias nacionais e internacionais — uma busca por questionar os cânones do cinema e reposicioná-los frente à novas perspectivas. A escolha de Agnès Varda, por exemplo, encara justamente esse confronto produtivo entre o passado e o presente do cinema. Ao colocar obras de cineastas já canonizados em contraste com produções contemporâneas, o festival é capaz de não apenas revisitar legados, mas os reinterpretar a partir dos tensionamentos atuais. Ver um filme de Varda ao lado de uma produção da Competitiva Brasileira, por exemplo, permite traçar linhas de influência e ruptura, evidenciando como o cinema está sempre em movimento, e como o festival se propõe a ser um espaço de escuta e reinvenção contínuas.
GABRIEL BORGES: Nos interessa, como pessoas que admiram o trabalho [de Agnès Varda] e a influência dela, que o público assista aos seus filmes no cinema. Ao mesmo tempo, também nos interessa recolocar alguns filmes que talvez não sejam tão falados dentro da trajetória dela. Uma Canta a Outra Não, por exemplo. Um filme que apesar de ser uma das grandes ficções que ela dirigiu, talvez não seja uma das mais faladas. Muitos dos curtas também surgem dentro dessa ideia. Exibir Ópera-Mouffe junto com Cléo das 5 às 7 não vem só nesse desejo de passar os filmes que são próximos no tempo, vem também de um desejo que as pessoas que vão assistir a um vão também assistir ao outro. Então tem essas várias vertentes, tanto de pensar uma programação a partir dessa cineasta que tanto nos interessa, como pensar ela a partir da programação. Acho que é essa via de retroalimentação que uma programação começa a oferecer para a gente.
Mas, claro, além da possibilidade de diálogo entre as próprias obras da diretora homenageada e o fomento de interesse do público a títulos talvez antes desconhecidos, ainda existem critérios mais específicos e subjetivos considerados dentro do exercício da curadoria. Que ajudaram, inclusive, a chegar até o nome de Varda.
GB: A gente parte de uma construção bastante livre, talvez até livre demais. Acho que um primeiro desejo era que a retrospectiva desse ano fosse dedicada ou ao universo feminino, ou a uma cineasta mulher, ou a uma cineasta trans, buscando outras identidades de gênero, a partir do recorte dos últimos dois anos. A gente já vinha de dois anos bastante masculinos, inclusive pelo universo construído pelos dois cineastas, o Cronenberg e o Hou Hsiao-hsien. Então isso era um dado desde o ano passado, algo que a gente já mantinha na cabeça.
É, portanto, dentro de um grande quebra-cabeça de possibilidades que o nomes surgem no contexto do festival — e, na verdade, acabam criando um contexto para eles próprios. Não há uma temática específica em cada edição do Olhar de Cinema, e sim o desejo de manter livre os caminhos para a criação de relações entre as obras assistidas.
Derivas, diálogos, pontes
Essa liberdade, talvez, seja o mais próximo de um ponto comum compartilhado tanto pela Mostra Retrospectiva em questão, quanto pelo restante da organização das sessões. Liberdade para estabelecer as próprias relações entre os filmes, liberdade para construir pontes entre uma mostra e outra, encontrar o mesmo propósito de um filme paranaense em um filme estrangeiro, enxergar como uma obra e outra se refletem, se influenciam. Enfim, existem muitos jeitos de encarar a programação do festival.
Nesse quesito, a curadoria busca evidenciar o horizonte dessas possibilidades. No caso, partindo de uma cineasta franco-belga, mas expandindo para outras geografias e narrativas — incluindo produções da Ásia, África e Palestina — com o intuito de construir contrastes e percursos que desafiem o olhar hegemônico do Ocidente. O festival destaca gestos cinematográficos que assumem posturas contra-coloniais ou humanistas, fortalecendo a diversidade de vozes e formas de existência nas telas.
Os filmes de Varda, portanto, que carregam esse olhar tão humano, um interesse pelas margens e uma atenção à memória e aos gestos cotidianos, são capazes de dialogar profundamente com outras mostras do festival.
GB: A gente vai ver esse diálogo se construindo de diferentes maneiras. E mais do que tentar forçar relações curatoriais, acho que uma coisa que a gente sempre tenta deixar no Olhar é o espaço mais aberto possível também para o espectador, e daí o nome da mostra ser Derivas por Varda. Também passa por isso, para que o espectador também tente navegar pelas sessões do festival com uma certa liberdade, que também possa transitar pelas salas, por todos os espaços que estão aqui na programação, meio livremente, e se permitir construir essas relações.
Subjetividades & se colocar no mundo
Curar um festival como o Olhar de Cinema é, no fim das contas, um gesto atravessado pela subjetividade. Ainda que exista um esforço coletivo e que o processo envolva muitos olhares distintos, a escolha de cada filme parte também, inevitavelmente, de uma dimensão afetiva. Cada integrante da curadoria carrega suas referências, seus encantamentos, suas inquietações. A seleção, então, se dá nesse espaço de negociação entre o gosto pessoal e o que o tempo presente exige — entre aquilo que toca individualmente e aquilo que reverbera cultural e politicamente no agora.
GB: Lidar com obras como as de David Lynch ou Souleymane Cissé é um bom exemplo. Quando surge o desejo de homenagear um cineasta, especialmente após sua morte, a primeira reação costuma ser escolher o filme que mais nos marcou. No caso de Lynch, Cidade dos Sonhos talvez fosse a escolha mais óbvia, mas o filme já estava em cartaz no último mês. Então, faz sentido passar um filme que já teve sua chance de exibição? Isso também nos ajuda a entender por que certos títulos não entram na programação: a gente tenta preservar o ineditismo e a singularidade da experiência no festival. Assim, entre debates e trocas, surgem os consensos, como aconteceu com Eraserhead, o primeiro filme do Lynch que vira chaves tão interessantes e serve como ponto de virada dentro da seleção, sendo esse exemplo máximo do que pode ser a liberdade do cineasta.
Essa dinâmica se repete na retrospectiva dedicada a Agnès Varda. Quando a diretora se tornou a escolha, o processo de definição dos filmes passou a se dar também por esses questionamentos: por onde vagam seus personagens? Quais caminhos abrem as imagens?
A partir de filmes menos óbvios como La Pointe Courte, seu longa de estreia, que completa 70 anos, e Ópera-Mouffe, curta-metragem de cunho muito pessoal; e outros já celebrados por um público maior, o caso do clássico Cléo das 5 às 7 e do instigante documentário Saudações, Cubanos!, a curadoria se permitiu derivar livremente, costurando um percurso que não é linear, nem completamente temático. Como a trajetória de Varda, a seleção se constrói em desvios, nos encontros entre curtas e longas, nos contrastes entre documentário e ficção, no diálogo entre filmes e espaços.
GB: Tem uma coisa que é fundamental numa curadoria de um festival, que é se entender em relação ao mundo. No sentido de entender que você não tá fazendo uma curadoria no vácuo, e sim uma curadoria num mundo que tá se acabando, num mundo que tá se roendo e se alimentando de si mesmo. Você não pode ignorar que determinadas coisas estão acontecendo. Você não pode ignorar o genocídio em Gaza, você não pode ignorar a guerra na Ucrânia, você não pode ignorar os genocídios no país, você não pode ignorar as coisas. Você não pode programar a partir de lugar nenhum. Você precisa programar em relação a algo.
A arte, de maneira geral — mas aqui especialmente com o cinema —, nos faz ser parte de algo, nos condensa com a sociedade que vivemos. O que não significa que devemos ignorar nosso próprio ethos, mas que somos convocados a nos posicionar e nos manter conscientes com o nosso redor. Talvez seja esse o principal ponto da conversa que tivemos, para além da excelência da diretora homenageada e da pluralidade do festival. Entender que a arte e o artista existem em um contexto e seguir conscientes das urgências que nos cercam. Esse é o essencial.