Os universos de André Abujamra
O legado oculto de um dos grandes nomes da música psicodélica brasileira
Se você acompanha a Repeteco regularmente, provavelmente já me viu falando sobre como grande parte do meu gosto musical foi moldado pelo que meu pai ouvia em casa, seja pelo rádio ou, mais tarde, pelo celular. Depois de já ter explorado aqui o trabalho de artistas como Criolo e Paulo Leminski, também por influência dele, sinto que chegou a hora de revisitar um nome que marcou profundamente essa dinâmica: André Abujamra. Este texto é, ao mesmo tempo, uma dívida e um tributo, dedicado a um dos músicos mais originais e fascinantes que já tive o prazer de descobrir graças ao meu querido pai.
André Abujamra atua como um verdadeiro nômade musical, sempre em busca de novos territórios. A sua carreira parece marcada por uma inquietação criativa que o leva a explorar o inusitado e a rejeitar o básico. Na década de 1980, ao lado de Maurício Pereira, pai de Tim Bernardes, formou a icônica banda Os Mulheres Negras, autointitulada como “a terceira menor big band do mundo”. Com um humor afiado e uma abordagem irreverente, a dupla desafiava convenções, mesclando muito experimentalismo, pop e ironia, sem nunca pensar em moldes ou posições.
Em sua carreira solo, Abujamra rompe com as fronteiras da realidade, assumindo múltiplas personalidades e explorando universos diversos, como no visceral disco O Homem Bruxa (2015), um de seus trabalhos mais intensos — e a minha porta de entrada para a sua discografia. Além disso, a sua conexão com o cinema também é profunda, mesmo que não seja amplamente reconhecida pelo grande público. André é responsável por trilhas sonoras marcantes do cinema nacional, incluindo as de Carandiru, Bicho de Sete Cabeças e Durval Discos — este último já discutido por aqui.
Então, nessa espiral mágica e urbana, convido você a mergulhar na obra de André Abujamra e a explorar os segredos da levitação — um convite não apenas para ouvir música, mas para flutuar entre realidades e sentimentos.
Música serve pra isso
Os Mulheres Negras foi uma dupla formada por dois homens brancos. Os paulistas André Abujamra (voz, guitarra e teclados) e Maurício Pereira (voz e saxofone) reinventaram o que São Paulo entendia como performance musical ao subirem no palco com sobretudos e chapéus-coco de palha, sustentando uma estética única e irreverente. O som que produziam, por sua vez, misturava gêneros de forma ousada, utilizando equipamentos eletrônicos para simular o som de uma orquestra improvisada, acompanhada por letras cheias de humor, paródia e crítica, transitando entre o universo pop e underground em uma experiência tão inovadora quanto desconcertante, que até hoje é lembrada por quem a vivenciou na época.
André e Maurício se conheceram em 1984, durante um curso de percussão africana, um interesse em comum que despertou a vontade de ambos pela fusão de ritmos e experimentação musical. No ano seguinte, logo deram início ao projeto Os Mulheres Negras, levando sua mistura única de humor, improviso e música psicodélica para o circuito alternativo de São Paulo. Com apresentações performáticas e interativas, conquistaram um público que já sabia cantar as suas músicas mesmo antes de serem lançadas oficialmente.
O primeiro álbum dos amigos, Música e Ciência (1988), opera como uma verdadeira celebração à diversidade da música. O disco transita entre gêneros como funk, lambada, baião, punk e bossa nova, criando um universo sonoro multicolorido e apostando em instrumentais extensos e rebuscados. A lírica, repleta de abstrações e referências mundanas, evocam influências que vão de Beatles e Villa-Lobos a Peppino di Capri, consolidando o repertório da dupla como uma salada única e excêntrica.
No lugar onde eu nasci
Tão bonito lá, tão pequenino
As pessoas amam o mar
Construiram um submarino
Fizeram um sub
Marino amarelo
Já em seu segundo álbum, Música Serve Pra Isso (1990) Os Mulheres Negras adotaram uma abordagem mais acessível, atenuando os elementos psicodélicos que marcaram o primeiro disco. A nova proposta trouxe refrões mais elaborados e um foco maior em ritmos dançantes, numa tentativa de alcançar um público mais amplo e explorar um potencial radiofônico. No entanto, em 1991, André Abujamra e Maurício Pereira decidiram seguir caminhos separados, colocando fim à trajetória da banda — porém, a parceria musical entre eles nunca se desfez completamente.
Durante o período em que Os Mulheres Negras esteve inativo, ambos continuaram colaborando: criaram juntos a trilha sonora do icônico programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, além de contribuírem mutuamente em álbuns solo e em outros projetos. Essa conexão criativa manteve viva a essência do trabalho da dupla, mesmo que em contextos e operações completamente diferentes.


Algo que salta aos olhos na breve, mas labiríntica discografia de Os Mulheres Negras, é como a música da dupla parece estar profundamente enraizada na essência da metrópole. Suas composições capturam a dinâmica multicultural e o caos urbano, transformando essa complexidade em uma mistura vibrante de sinfonias e batuques. É a visão sonora de um emaranhado de arranha-céus cinzentos que erguem-se sobre ruas cheias de vida, coloridas, mas marcadas pelo desgaste do tempo — um reflexo poético e vivo da beleza e das contradições das grandes cidades.
Apesar de seu espírito vanguardista e do reconhecimento apaixonado de um público fiel, Os Mulheres Negras nunca alcançaram o renome ou o espaço dos grandes nomes da música de sua época, permanecendo em nichos mais discretos da cena. No entanto, isso pouco importava para André e Maurício, que, completamente imersos em seu universo criativo, seguiram produzindo e experimentando sem se preocupar com as convenções do mercado.
Entre os seus maiores sucessos estão “Purqua Mecê”, “Milho” e “Common Uncommunicability”, canções que, quando ouvidas isoladamente, podem parecer obras de artistas distintos em contextos e épocas completamente diferentes — uma assinatura inconfundível da amplitude e diversidade que definiu a dupla.
A carreira de André Abujamra, longe de se encerrar com o fim de Os Mulheres Negras, seguiu um caminho igualmente inventivo e prolífico. Mesmo com promessas de um retorno aos palcos com a antiga dupla, André consolidou-se como uma figura indispensável na música e no cinema brasileiro.
O homem bruxa
Após o término de Os Mulheres Negras, André Abujamra seguiu explorando o experimentalismo em sua nova banda, Karnak, formada em 1992. O grupo, que incluía músicos, atores e até um cachorro, misturava estilos diversos, englobando música brasileira, ritmos africanos e influências do rock. Discos como Karnak (1994) e Universo Umbigo (1997) consolidaram a banda como um ícone de criatividade e ousadia na música nacional, alcançando ainda mais sucesso que Os Mulheres Negras.
Com referências que vão de Igor Stravinski a Hermeto Pascoal e Frank Zappa, André Abujamra está constantemente imerso no seu próprio processo criativo, seja na produção musical ou ao explorar a sonoridade de múltiplos instrumentos, a sua paixão pela música transcende o próprio ato de compor. Filho do lendário ator e diretor Antônio Abujamra, André carrega consigo não apenas um vasto repertório cultural, mas também o peso e a inspiração de um legado familiar profundamente enraizado nas artes.
Essa herança parece ter moldado a sua abordagem única à música, unindo a teatralidade herdada do pai a um experimentalismo quase cinematográfico. Desde cedo, André demonstrou um fascínio por narrativas e estruturas complexas, refletidas em sua capacidade de traduzir emoções em melodias profundamente imersivas, transformando o ordinário em extraordinário.
“A única coisa que me cura os males da alma é o som, o barulho. Qualquer som para mim é música”.
Disse em entrevista. Em sua carreira solo, Abujamra aproveitou-se de sua própria liberdade e maturidade artística para flutuar sem amarras. Em Omindá (2018) ele conecta culturas através de ritmos globais, abordando questões de união e preservação ambiental, com sons que remetem à riqueza e à diversidade das tradições brasileiras e internacionais. Já O Infinito de Pé (2004) explora temas mais introspectivos, com arranjos complexos que evidenciam a sua habilidade de criar universos ricos e sentimentais.
No entanto, O Homem Bruxa é uma obra singular na carreira de André Abujamra, consolidando-se como um de seus discos mais intensos e inventivos. Lançado em 2015, o álbum representa um mergulho profundo na fantasia urbana, explorando temas que evocam tanto a magia quanto a crueza da vida nas cidades grandes. Através de composições densas e atmosféricas, André constrói um universo narrativo que transforma ruas sujas e ambientes caóticos em cenários poéticos, onde beleza e degradação coexistem. É uma celebração do feio, do sujo e do místico que, em mãos menos hábeis, poderia facilmente parecer exagerada, mas que aqui é conduzida com maestria.
Entre os destaques do disco estão as faixas “Mendigo” e “Espelho do Tempo”. Na primeira, Abujamra interpreta um personagem marginalizado em uma profunda crítica ao descaso social, mas também em reconhecimento à humanidade que pulsa nas ruas. Com arranjos que misturam violões delicados a percussões ritualísticas, a faixa evoca a sensação de movimento perpétuo, como o caminhar incansável de alguém perdido em um labirinto urbano. Já em “Espelho do Tempo”, o tom é mais introspectivo, com letras que refletem sobre a passagem do tempo e a fragilidade da existência. A melodia, conduzida por piano e cordas, é tão melancólica quanto esperançosa, criando um espaço de contemplação dentro do caos.
O brilho do olhar do seu tataravô
É o brilho do olhar do seu filhote
Vencendo o tempo
Vencendo a morte
E o que aconteceu ainda acontece
Seguindo essa ideia, a influência de André Abujamra transcende a sua própria obra. Ele pavimentou um caminho de liberdade criativa e experimentação que ressoa até hoje em uma nova geração de músicos jovens e inovadores. Mesmo que muitos deles não tenham consciência de seu trabalho, é inegável que as suas escolhas ousadas, tanto na música quanto no cinema, abriram portas para novas formas de expressão.
André é um visionário da música brasileira moderna, um criador de universos únicos que continuam a inspirar aqueles dispostos a inovar e a arriscar. Seu legado é um testemunho da força da autenticidade, provando que os passos mais ousados e primordiais podem reverberar por décadas, mesmo nas trilhas onde os seus autores caminham em silêncio.
genial