Quem nunca se viu enfrentando uma situação tão revoltante que, em meio à frustração e impotência, acabou dizendo algum absurdo como "eu seria capaz de cometer um crime"? No sistema hostil e predatório em que estamos inseridos, situações como essa são mais comuns do que deveriam e, diante disso, muitas pessoas sentem-se à beira do colapso, buscando maneiras de lidar com uma infinidade de problemas e frustrações — e é justamente a partir desse descontentamento que alguns conseguem transformar essa revolta em arte, dando voz a sentimentos que, de outra forma, poderiam simplesmente explodir.
Em Curitiba, uma cidade onde a sistematização e políticas higienistas moldam o dia a dia, é irônico que o gênero que melhor canalize esse sentimento de revolta seja justamente o punk, caracterizado por sua sujeira, gritos e uma contestação incessante às normas impostas. Porém, dentre os vários nomes que representam o punk na cidade, poucos destacam-se tanto pela sua rebeldia e autenticidade quanto a Patada.
Formada no início de 2022, a Patada passou por diversas mudanças em sua formação ao longo do tempo, afinal, conciliar a música com as exigências de trabalho, estudo e contas a pagar pode ser desafiador, mas há quem persista. Atualmente, a formação da banda conta com Tiemi Costa (vocal/guitarra) e Gabriela (bateria), ambas fundadoras, além de Ivy Sumini (baixo), veterana de grupos como Bravonas, Naomerita e Balbúrdia, e Nanashara Scaravelli (guitarra), também integrante da Balbúrdia.
Com essa equipe experiente, além de marcar presença, a Patada incendeia a cena underground de Curitiba. Suas performances intensas e letras contundentes, recheadas de ironia e humor, traduzem a luta de quem se destaca em um ambiente hostil, provando que o estilo e a paixão são capazes de transformar as dificuldades em rebeldia.
O diabo mora nos detalhes
A Patada surgiu em meio à pandemia de COVID-19, fruto das inquietações e do desejo de Tiemi e Gabriela em formar um duo de rock. Contudo, após algumas mudanças na formação inicial e com a chegada de Ivy e Nanashara, o grupo amadureceu e se prontificou para gravar as composições de Tiemi. Nesse processo, um imprevisto quase abalou os planos: a baixista original deixou a banda uma semana antes das gravações. Mas, aos trancos e barrancos, a Patada seguiu em frente — e tudo acabou dando certo.
Em janeiro de 2023, lançaram o EP Fogo, Gasolina, incluindo três faixas e o explosivo hit homônimo que, até hoje, é um dos pontos altos de suas apresentações ao vivo. Com uma mistura de gritos intensos e instrumentais enérgicos, dançantes e precisos, a banda expressa em música a revolta das encruzilhadas cotidianas. Em entrevista a Equipe Repeteco, comentam:
TIEMI COSTA: A Patada foi a primeira banda em que eu compus, sabe? Então, as primeiras músicas saíram mais experimentais, e a gente acabava focando as letras em coisas do dia a dia. Mas, no nosso segundo EP e com a formação atual, começamos a fazer um som mais nosso. Foi aí que comecei a escrever mais sobre a minha experiência como mulher e a entender o que eu queria cantar. O próprio punk é muito contestador e barulhento por natureza, e foi assim que escolhemos cantar.
NANASHARA SCARAVELLI: O punk surge para nós a partir do momento em que percebemos que certas coisas acontecem com os homens, mas não com a gente — e então vem essa revolta, essa vontade de gritar. A Tiemi, por exemplo, é uma mulher, mãe e trabalhadora vivendo uma jornada tripla, então é muito natural querer colocar os sentimentos para fora, quase como uma terapia. Quando tocamos juntas, nos expressamos dessa forma, de maneira muito unida.
GABRIELA: Muitas bandas nos influenciam desde que tínhamos, sei lá, 15 anos, e continuam sendo referências até hoje, principalmente as bandas punk formadas por mulheres, como Bikini Kill e outras que fomos descobrindo pelo caminho. Então, o punk está com a gente há muito tempo.
Um ano depois, no início de 2024, a Patada voltou aos estúdios para gravar o já icônico EP Talvez Eu Cometa um Crime — um marco na trajetória da banda tanto em termos de produção quanto de sonoridade e letras. O trabalho, mais do que nunca, incorpora as vivências das integrantes no som, transformando as suas experiências em uma poderosa ode à revolta. As letras, seguindo essa mesma ideia, expressam a indignação acumulada diante das contradições do sistema e dos desafios enfrentados por elas, os quais motivam ideias ousadas e, digamos, pouco constitucionais.


Com seis faixas, incluindo os hits "Fiscal", "Gente Boa" e a encantadora "Novela Mexicana", o EP teve um lançamento marcante no Janaíno Vegan Bar. O show de estreia incendiou o público com um punk eletrizante que, embora enraizado em sentimentos profundos de revolta e frustração, mantém a energia de uma verdadeira festa, repleta de diversão, muita bebida e boa dança — capturando perfeitamente o espírito vibrante e autêntico da Patada.
Adolescentes por um dia
Como já mencionado, a relação das integrantes da Patada com o rock não começou apenas com a formação da banda. Assim como muitos de nós, a paixão delas pela música foi alimentada não apenas pelas bandas que ouviam, mas também pela experiência única de viver a cena underground da cidade. Durante a entrevista, Tiemi e Gabriela compartilharam memórias de quando frequentavam o icônico 92 Graus, onde assistiam aos shows de diversas bandas e bebiam chopp aguado, em noites que definiram a sua adolescência e moldaram a sua história com o rock.
Entre as bandas que marcaram aquela época, um dos destaques era a Psicotrópicos Deluxe, um veterano grupo de surf rock que cativou a juventude local. Hoje, sob o nome de Os Cavaleiros Temporários, a banda que encantou Tiemi e Gabriela encerrou um ciclo ao se apresentar ao lado da Patada em um show especial no Joaquim Livros & Discos, em 10 de agosto de 2024. O evento foi uma celebração íntima e afetiva, unindo a história de ambas as bandas e reforçando a conexão entre gerações da cena musical curitibana.
Ivy, por sua vez, cresceu muito influenciada pelas bandas do seu irmão. Porém, talvez a história mais impactante seja a de Nanashara, que encontrou no rock uma poderosa válvula de escape. Contam:
IVY SUMINI: O meu irmão sempre teve banda, então a minha família sempre foi muito musical. Em casa, a gente ouvia muito vanerão e sertanejo, e é isso que eu toco para eles até hoje em todo churrasco de domingo. Mas, apesar disso, o meu irmão tocava Garotos Podres e Nirvana com a banda dele, e eu fui me encontrando no meio disso, descobrindo o meu próprio gosto.
NS: Eu estudava em um colégio de freiras, e eu metia a porrada em todo mundo, sabe? Minha turma era só os excluídos, e eu batia muito em quem fazia bullying com a gente. Aí me mandaram para a psicóloga, e lá tinha um violão. Um dia, eu comecei a bater nas cordas e a gritar, fazendo uns sons esquisitos. Sabendo disso, no fim do ano, o meu pai me deu um violão, e foi assim que tudo começou. Eu tinha uns 8 anos e o rock já estava dentro de mim [risos]. Ele foi uma alternativa para parar de bater nos outros.
No fim, além de ser uma representação poderosa das mulheres na cena de Curitiba, a Patada também é fruto de uma geração que cresceu imersa em um oceano de bandas underground brasileiras e internacionais. Além disso, elas encarnam a essência de um grupo de músicos que, apesar das dificuldades e da fragilidade da cena do rock independente, continuam a fazer barulho e a desafiar o status quo.
Em um cenário que muitas vezes parece escasso em oportunidades e infraestrutura, a banda persiste com a mesma dedicação e intensidade que o rock sempre exigiu. A sua vontade de produzir novas músicas e continuar se apresentando, mesmo diante dos desafios, demonstra um amor inabalável por essa bagunça vibrante e caótica que é o rock. A Patada, portanto, é uma das grandes responsáveis por manter o rock vivo na capital paranaense, em uma amálgama refrescante de rebeldia e paixão.