Raízes do pós-punk em solo brasileiro
Um mergulho pelas bandas nacionais que permearam a cena nos anos 80 e 90
É difícil determinar o surgimento exato do pós-punk. Obviamente, como o nome sugere, deriva do punk, mantendo seus elementos mais básicos presentes — mas sobrepostos por uma grande influência de ritmos diversos, como música eletrônica, disco e experimental. Além disso, o gênero concebido no fim dos anos 70, no Reino Unido, se apropria de elementos da literatura, arte moderna e cinema para criar um liricismo mais complexo.
Apesar de o primeiro lançamento da banda britânica Wire, Pink Flag, ser considerado o percussor do movimento, é válido dizer que foi graças à Siouxsie and the Banshees que o gênero foi propriamente tomando forma. The Scream, álbum lançado pelo grupo em 1978, sintetiza toda sonoridade angustiante e desorientada que viria caracterizar o pós-punk alguns anos depois.
Mas e no Brasil, será que o gênero chegou a ser assim tão influente? O que acontece quando as raízes de ritmos nacionais se misturam com a paixão de trazer um som admirado à própria língua? Quais são as principais bandas que se propuseram a importar essa sonoridade, originalmente britânica, adaptando-a ao solo brasileiro? Isso é o que veremos no texto de hoje.
Mesmo não sendo uma das primeiras, Vzyadoq Moe é com certeza a mais única entre as bandas que vigoraram e conseguiram espaço no underground brasileiro — e por isso, merece esse destaque inicial. Sua sonoridade distinta, com letras influenciadas por Clarice Lispector, Augusto dos Anjos e impressionismo alemão, surge em 1986 na cidade de Sorocaba e continua sendo relevante e lembrada até os dias de hoje.
Composta por Fausto Marthe (voz e letras), Marcelo Raymond (guitarra), Marcos Stefafeni "Peroba" (bateria e percussão), Edgard Degas (baixo) e Jacksan Moreira (guitarra), a banda começou a ganhar destaque a partir de uma entrevista veiculada pela revista BIZZ.
Queremos chegar à Europa. Tem muita gente que acha que banda nacional não presta. Queremos mudar isso. Temos condições de arrebatar o cetro de Londres. Lá está tudo morto! As únicas coisas novas e que realmente prestam são Smiths e Jesus and Mary Chain
Apostando em um som derivativo de elementos do samba, somado a influências de Joy Division e Einstürzende Neubauten, sua bateria era formada por latas, pedaços de metal e chapas de zinco, responsáveis por criar a aura hipnótica e (quase) violenta das faixas.
Em “Não Há Morte”, lançada em 1988 no disco O Ápice, tudo isso fica evidente. A faixa soa como um angustiante relato que poderia ter saído de um livro de Liev Tolstói, pincelado por baterias características do samba e um riff inconfundivelmente pertencente ao pós-punk.
Digo e se nada te fere ou rebate
Então qual remédio é a fonte, o final?
Não há morte que sane nossos males
Nossas sortes fluem, como na correnteza
E o amor urge, não tarda ou recua
Não há morte que sane nossos males?
Outra banda que exemplifica com maestria a mistura entre sonoridades distintas e uma base pós-punk é a brasiliense Finis Africae, com sua adição hipnotizante de elementos do reagge e do funk às linhas de baixo clássicas do gênero britânico.
Tendo o nome inspirado no livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco, a banda surge em 1984, combinando romantismo e existencialismo com críticas sociais e o suingue de elementos do funk transpassado por guitarras angustiadas.
Com a formação de José Flores na guitarra, Neto Pavanelli no baixo, Ronaldo Pereira na bateria e Eduardo de Moraes nos vocais, gravam um EP e em seguida, com a ajuda de Renato Russo, conseguem um contrato com uma gravadora e lançam seu primeiro álbum.
“Armadilha”, sua faixa mais conhecida e responsável por uma maior repercussão da banda, integra esse primeiro disco. Com vocais expressivos e uma lírica sobreposta pela variedade instrumental, conseguem emitir uma aura contemplativa extremamente distinta.
Chego em casa tarde
E ninguém me vê
Não há nada errado
Em não saber o que fazer
Mas não troquei minha boca fechada
Pelas suas palavras vazias
Mas tratando de pioneirismo, acredita-se que a primeira banda a trazer o gênero ao solo brasileiro foi a paulista Voluntários da Pátria. A partir de influências de Gang of Four e The Cure, chegou à sua formação mais conhecida com Nasi nos vocais, Thomas Pappon na bateria, Ricardo Gaspa no baixo e os guitarristas Miguel Barella e Giuseppe Frippi.
Apesar da curta trajetória, que logo daria espaço a projetos individuais e novas bandas — Nasi e Gaspa se dedicariam ao Ira!, Thomas montou o Fellini e o Smack e Miguel e Giuseppe fundaram o Alvos Móveis —, o Voluntários da Pátria atingiu grande renome na cena underground brasileira, especialmente no núcleo de rock paulista.
Seu único disco homônimo foi precursor no estilo, revelando faixas clássicas como “O Homem Que Eu Amo”, “Cadê o Socialismo” e “Verdades e Mentiras”.
A bíblia distorce o passado
Mentiras que impõem a verdade
Os fatos estão nas revistas
Mentiras invadem a cidade!
O homem mente, o homem mente
É verdade!
E já que citamos Fellini, vale se aprofundar um pouco mais nessa que foi uma das mais relevantes e duradouras bandas da cena. Além de Thomas Pappon na guitarra, o grupo ainda contava com Cadão Volpato nos vocais, Jair Marcos na guitarra e Ricardo Salvagni no baixo.
Em entrevista ao Scream & Yell, deixam claro as influências nos berços do pós-punk:
O primeiro ensaio foi em 18 de maio de 1984. A gente guardou essa data porque foi o quarto aniversário da morte do Ian Curtis, do Joy Division
Na intenção de misturar rock europeu — vale conferir, inclusive, a faixa “Rock Europeu”, presente no disco O Adeus de Fellini, de 1985 — com música brasileira, usavam de recursos caseiros para as gravações e reaproveitavam toda a angústia da vida na metrópole. A São Paulo de Fellini era tão cinza e melancólica quanto a Manchester de Joy Division.
A banda se despediu dos palcos oficialmente em 2016, com uma série de shows na capital paulista. Porém, em 6 de março de 2020, se reuniram novamente para um show que marcou o lançamento de um disco, lançado pelo selo NadaNada, formado por canções inéditas gravadas entre 1984 e 1990.
Dentro do mesmo selo, encontra-se outra banda muito importante para a cena: Mercenárias. Também paulistanas, surgem no início dos anos 1980, e alcançam a formação clássica com as integrantes Sandra Coutinho no baixo, Rosália Munhoz no vocal, Ana Maria Machado na guitarra e Lou na bateria.
A trajetória transgressora, que começou em 1982, estende até hoje — mesmo contando somente com Sandra Coutinho da formação original. A banda feminina é inspirada pelo som de grupos como Siouxsie and the Banshees, Joy Division, The Slits e Sex Pistols. Porém, nutriam um aspecto mais cru e explosivo, que acabava misturando punk, pós-punk, new wave, além das letras provocativas e muitas vezes políticas.
Em 1986, as Mercenárias lançaram o seu primeiro álbum, Cadê as Armas?, o responsável por chamar a atenção de gravadoras e angariar um público fiel. Em julho de 2016, o disco levou o título de 5º melhor álbum de punk rock do Brasil, pela revista Rolling Stone Brasil.
Polícia vai
Com toda velocidade
Vai matar assaltante
Vai pedir os documentos
Polícia vem, a polícia vai
A polícia vem, a polícia vai
Onde não é chamada
Para finalizar, ainda sem sair do eixo São Paulo, é indispensável contemplar o Cabine C. De 1984, são inspirados sonoramente por The Cure, Talking Heads e Cocteau Twins, e liricamente por Antonin Artaud, Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud.
Com Ciro Pessoa, ex-membro dos Titãs, no vocal, Anna Ruth no baixo, Wania Forghieri no teclado e Marinella Setti na bateria, lançaram seu primeiro e único disco: Fósforos de Óxford. As músicas exploram uma variedade de temas, desde a alienação urbana até questões existenciais e políticas.
“Pânico e Solidão” é um dos destaques do disco. Aloja a melancolia instrumental aos vocais angustiados, exprimindo todas as características dignas de uma faixa clássica do pós-punk underground.
Bússolas de precisão não sabem lhe dizer
Em que ponto do oceano ele foi se perder
Rádios em dissintonia tentam lhe dizer
Existem muito poucas chances de sobreviver
Pânico e solidão a bordo do navio
Quando tratamos de um tema, que agora sabemos ser tão amplo, como a pós-punk nacional, se torna impossível englobar todos os grupos relevantes da cena. Por isso, a Repeteco preparou uma playlist mais abrangente, com toda a potência das bandas citadas — e de outras igualmente importantes que infelizmente não couberam no recorte.
Seja através da experimentação sonora, da fusão com elementos regionais ou da expressão de inquietações sociais e existenciais, o pós-punk nacional se estabeleceu como um movimento essencial a quem se interesse pela história da música underground brasileira, deixando um legado que continua a influenciar e inspirar novas gerações de músicos e ouvintes.