I grow old ... I grow old ...
I shall wear the bottoms of my trousers rolled.
Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach?
I shall wear white flannel trousers, and walk upon the beach.
I have heard the mermaids singing, each to each.
T.S. Eliot - The Love Song of J. Alfred Prufrock
A música às vezes é injusta. Para entender meu ponto, bastar parar e pensar em todos os artistas que nunca conheceremos, em todas as canções que nunca iremos ouvir. Isso é meio óbvio, né? Eu sei. Mas aqui não culpo essa injustiça na quantidade de lançamentos que presenciamos atualmente, nem na indústria musical. É um sentimento um pouco diferente. Falo de uma privação que, de certa forma, é bonita, já que faz perceber que a arte nos permite satisfação em guardá-la para nós mesmos. Fazer música para nossos próprios ouvidos. E isso já basta.
São essas produções espontâneas, a arte pela simples vontade (e necessidade) de ser expressada, que me fazem refletir nas tantas coisas belas que nunca sequer conheceremos. E foi por pouco que Sibylle Baier não entrou nesta categoria. A artista manteve as canções que gravava sozinha em sua casa por muitos anos no anonimato. Mas, graças a curiosidade e fascínio de seu filho, o também músico Robby Baier, sua poesia sonora chegou aos ouvidos de um público maior — ainda que 36 anos mais tarde.
O que sabemos
É difícil encontrar detalhes ou fontes confiáveis sobre a vida de Sibylle Baier para além de seus feitos artísticos. Se pesquisamos o ano em que nasceu no Google, por exemplo, o primeiro resultado da Wikipédia informa 1955. No entanto, se buscarmos pela rara entrevista que concedeu ao Goethe Institute e fizermos alguns cálculos, descobriremos que o ano correto seria, na verdade, 1946. Esses fatos soltos, as informações incompletas ou equivocadas e a necessidade de depender de escassas fontes primárias, tornam o processo de escrita desse texto em um belo exercício arqueológico — e espero que isso transpareça para a leitura: essa sensação de desbravar algo único.
Nascida, portanto, em Stuttgart, na Alemanha de 1946, Baier já demonstrava, desde a infância, grande afinidade tanto pela música quanto por outros tipos de arte, como pintura, dança e teatro. Aos 15 anos, escreveu sua primeira canção, “Remember The Day”, inspirada pela recente viagem que havia feito com uma amiga por alguns países próximos. A composição, embora nascida de um momento feliz, já carregava a melancolia que viria a ser intrínseca à sua obra.
Ainda no começo de sua segunda década de vida, casou-se e tornou-se mãe. Sibylle, então, passou a enfrentar os desafios de equilibrar a vida familiar com sua paixão pela música. Mas, mesmo cuidando da casa e da família, ela ainda encontrava alguns momentos de solitude para criar. À noite, enquanto todos dormiam, gravava suas canções em fitas cassete, dando luz a um som íntimo e sensível.
O talento musical da artista, no entanto, não passava despercebido naquela época. Inclusive, durante uma conversa telefônica, o marido de Sibylle chegou a mencionar, casualmente, que sua esposa estava cantando ao fundo, ao que seu amigo, que era da indústria musical, pediu para ouvi-la melhor. Isso culminou em uma proposta para gravar suas canções com a Virgin Records. Só que ela rejeitou a oferta, optando pela estabilidade de uma vida familiar e pela simplicidade de seu cotidiano.
Em 1973, Sibylle e sua família se mudaram para os Estados Unidos, onde as fitas gravadas foram deixadas em um sótão, enquanto ela se dedicava a criar seus filhos em um ambiente bem longe do estrelato. Mesmo assim, sua conexão com o mundo do cinema permaneceu. A artista fez uma breve aparição no filme Alice nas Cidades (1974), de Wim Wenders, que, na época, já estava ganhando destaque no cenário cinematográfico. A amizade entre ambos era tamanha, que Sibylle compôs uma canção dedicada ao diretor: “Wim”.
Do you know Wim?
He likes cities and I like him
Do you know Wim?
Oh, just go and take an inner city train
And play a game and you'll meet him
Colour Green
Para falar de Colour Green, é preciso avançar trinta anos na vida de Sibylle Baier. Estamos, agora, em Massachusetts, no ano de 2006, mas especificamente na festa de aniversário de 60 anos da artista. É uma noite agradável entre amigos e família. Tudo segue normal, até que seu filho, Robby Baier, mobiliza uma surpresa.
De repente, uma voz que permaneceu em silêncio por 30 anos começa a ecoar pela casa. Todos os convidados da festa escutam, com exclusividade e pela primeira vez, as canções que a anfitriã havia gravado há tanto tempo atrás. Isso tudo enquanto a própria permanece incrédula diante desse segredo desenterrado e, repentinamente, exposto à todos. Mas, sobre isso, Robby explica melhor do que eu.
Então, eu basicamente editei e mixei as canções e tornei isso em um CD para o presente de aniversário dela. É melhor que a Sibylle conte antes como aconteceu, mas eu tenho certeza que não foi uma reação muito positiva.
A própria Sibylle, então, na mesma entrevista, compartilha o que sentiu na hora da surpresa.
E eu estou envergonhada, estou lívida, estou com raiva. Por que essas coisas velhas... essas coisas velhas da minha vida? Pelo amor de Deus! Foi muito desconfortável. E então, eu tomei uma bebida, e mais uma bebida, e cantei com eles.
E foi graças a uma feliz coincidência que esse CD tornou-se, cada vez mais, menos exclusivo. No fim das contas, um dos convidados da festa de Sibylle era Jay Mascis, líder do Dinosaur Jr. e amigo de Robby Baier. O músico, quando escutou as canções na ocasião, ficou deslumbrado e entrou em contato com a Orange Twin Records - gravadora de álbuns de Jeff Mangum, Elf Power, Neutral Milk Hotel e Nana Grizol — para que o disco fosse amplamente distribuído.
Em 2006, portanto, nasce uma outra Sibylle Baier. Nasce uma misteriosa cantora folk alemã, que posa serena na capa de seu único disco. Nasce Colour Green e a legião de entusiastas que, quiçá, também pouco sabem da história da voz que escutam exalar poesia. E nasce também um pouco da fama, junto com o tardio e merecido reconhecimento.
Sadness is beautiful
Decido me conter nas descrições de cada uma das faixas do álbum para dar à quem lê a oportunidade de ouvi-las, todas, às cegas pela primeira vez. Mas se posso, pelo menos, me demorar um pouco sobre uma delas, há de ser com “Says Elliott”.
O trecho do poema lá em cima, que abre o texto de hoje, The Love Song of J. Alfred Prufrock, de T.S. Eliot, é a inspiração para a maioria dos versos dessa canção. Mas Sibylle não somente os recita, e sim costura cada uma das partes da longa obra, se colocando no lugar do personagem solitário criado por Eliot enquanto, ao mesmo tempo, referencia o poeta. É uma confidência, um relato que nos permite conhecer os interesses da artista e observar seu entendimento de outro pedaço de arte. É, para mim, fascinante esse poder que o compartilhar de referências carrega. Sinto-me um pouco mais próxima dessa figura tão distante ao ouvi-la transformar os escritos de T.S. Eliot em uma canção folk. Engraçado.
I grow old, I shall wear the bottom of my trousers rolled, says Elliott
Days keep growing short, nights too
Let us go then, you and I
And try to unlearn, says Elliott
He seeks for return and burns ancient love letters
Escutar Sibylle Baier é perceber na prática a musicalidade da poesia. É como se só ela soubesse o segredo para dar voz a versos previamente feitos para habitarem somente o papel. E isso não se sente somente em Says Elliott, e sim ao largo todo o disco. Desde a inocência e o delicioso sabor amador que “Tonight”, a faixa que abre o disco, carrega, até a sonoridade hipnotizante que os violinos trazem à última, “Give Me A Smile”.
Colour Green é a significação máxima do ser artista em silêncio, da beleza que a solidão pode proporcionar, e do poder da arte espontânea, da arte feita pela necessidade de, simplesmente, escapar e se encontrar em outras formas de expressão.
Nesse sentido, para a própria Sibylle Baier e para quem o escuta hoje em dia, Colour Green é um álbum que, de muitas maneiras, opera também como uma cápsula do tempo. Em que ano estamos? Eu responderia: 1973.
Muito obrigado pelo post! Eu li só um pouquinho, vou terminar de ler depois, mas já gostei. Sibylle Baier é a minha artista favorita, eu não me canso das músicas dela, e olha que são poucas...