Snailmate e Budang: Dois lados opostos do hardcore
Como duas bandas tão diferentes se casaram tão bem em uma noite de show
Uma das partes mais mágicas de cobrir música fora dos grandes cenários é o poder de descoberta envolto nisso. A experiência de sair de casa e ver pessoas que você não conhece tocando músicas que você não conhece, mas que geram um sentimento tão bom, desbravando acordes e harmonias que você definitivamente não esperava. Foi basicamente isso que me aconteceu no dia 20 de Fevereiro de 2025.
Meu melhor amigo me chamou para um show no Basement, espaço de shows em Curitiba que se assemelha a um porão (daí a origem do nome). Perguntei quem ia tocar e ele me disse que uma banda de Florianópolis, Budang, relativamente grande no cenário hardcore brasileiro, mas que eu só conhecia de nome. Perguntei se mais alguém ia tocar e ele me falou sobre uma banda curitibana, uma outra catarinense e uma dupla estadunidense que nunca tinha ouvido falar. Comprei o ingresso mesmo assim, tudo seria na base da descoberta.
Infelizmente por causa da chuva perdemos o primeiro show, da banda O2, daqui de Curitiba mesmo, mas chegamos a tempo da banda Fucking Project, de Criciúma, que tinha um estilo mais voltado pro grunge, algo mais melódico com grande carga no baixo e nos efeitos de pedal. Após um belo show e uma cerveja, foi a hora que o motivo desse texto começou.
Meu Amigo Caracol
Logo após o fim do show da Fucking Project, saí para tomar um ar (e um chope) e passei por um dos estrangeiros que estavam na mesa de merchs saindo, indo em direção ao palco. Eu já tinha pego os adesivos gratuitos mais cedo então já tinha falado com ele, mas não sabia que era o baterista da Snailmate, prestes a começar seu show. Óbvio que eram uma das principais atrações da noite, porém, como apenas conhecia de nome, não sabia o que esperar, todavia não demorei para ser conquistado pela intensa presença de palco da banda.
A Snailmate é uma dupla, nos moldes que lembram o Twenty One Pilots, pois um assume a bateria (com vocal parcial) e o outro fica no vocal e no sintetizador, com auxílio de diversos efeitos que englobam o todo musical. Trata-se, respectivamente, de Bentley Monet e Kalen Lander, diretamente do estado do Arizona, nos Estados Unidos. De acordo com a descrição do Instagram deles, o perfil da banda é “genrefluid”, em alusão a genderfluid, ou seja, estilos fluidos, o que me fez repensar muito sobre o corpo desse texto, visto que tento caracterizar polos opostos de um mesmo gênero musical, mas acredito que o hardcore ainda seja a principal vertente da Snailmate.
As menções a Twenty One Pilots não são em vão, pois entre as principais influências da banda estão a dupla de Tyler e Josh, mas também Beastie Boys e Rage Against The Machine. Kalen e Bentley descrevem sua música como uma mistura energética de synthpunk, grindcore e nerd rap, além de seus shows como um espaço seguro para pessoas de todos os gêneros e sexualidades. O primeiro álbum da dupla, Love In The Microwave, lançado em 2017, foi o único lançamento musical físico até 2023, quando a dupla lançou seu segundo disco, Stress Sandwich, com 10 músicas, incluindo todos os singles lançados entre os 6 anos sem álbum. É importante frisar a parte musical, mas entre a infinidade de mercadorias disponíveis da banda, está o diferencial: seu molho de pimenta.
Entre o leque de abordagens nas suas músicas, estão temas sérios como aceitação, identidade queer e ansiedade, e não tão sérios como, novamente, molho de pimenta. Acho que é importante falar aqui que o baterista, Bentley, é um homem trans, então a Snailmate é além de aliada, super capacitada para falar desses temas (e distribui adesivos da bandeira trans com sua identidade visual). Desde o lançamento do álbum em 2023, a banda não parou, tendo iniciado uma turnê que passou pelo Brasil no estado de São Paulo, incluindo dois shows na capital, em Curitiba e Ponta Grossa no Paraná e em Santa Catarina em três localidades: Blumenau, Criciúma e Florianópolis.
Faço questão de citar de novo a tônica do show da dupla, que abraça o lúdico em cima do palco e usa de artifícios que conquistaram até os presentes que não os conheciam. A troca de estilos frequente e os efeitos vocais se casaram com um Kalen que a todo tempo interagia com o público e um Bentley que alternava entre o uso de uma máscara de caracol e um triângulo. Seu principal sucesso, I Know What You Want, foi uma das primeiras músicas, logo após Jumper/Cable, primeira música do primeiro álbum. O show ainda contou com as principais músicas do álbum Stress Sandwich, como The Laziest Man In The World e It’s Coming Back, e o principal single, Hot Sauce for Blood, que também serviu de propaganda para o molho de pimenta a venda no estande de merchandise.
Hardcore da Ilha da Magia
Inspirados em bandas como Bad Brains e Cro-Mags, os membros do Budang foram os próximos a assumir o palco. Com um hardcore mais próximo das primeiras influências do gênero, Gui Guths (vocalista), Vini Lunardi (guitarrista), Pedro “Pit” Sabino (baixista) e Felipe “Minhoca” Royg (baterista) já contam com 4 EPs: “不当”, de 2019; “Vendo Clio 2009, Prata 4 Portas” de 2020; Astrologia, Destino e Salmos, de 2022; e um split com a Jovens Ateus, lançado em Maio de 2024 (O split é uma prática comum no hardcore, onde duas bandas lançam um álbum ou EP em conjunto, num único disco).
Como dito antes, o estilo do Budang recai muito no rock pesado pré-noventista, com inspirações no grind e no punk, mas antes de continuar a falar sobre o trabalho deles, é preciso colocar um asterisco no que deixou o show muito mais único que o normal. Assim que se abriram as cortinas do Basement, Vini veio ao microfone dizer que o vocalista, Gui, não poderia estar presente, então ele seria substituído na noite por Jê Landini.
Pra quem não conhece, Jê é uma das principais referências do hardcore e do cenário underground hoje. Diretamente de São Paulo, não-binária e imersa na cultura straight-edge, ela faz parte de diversos projetos, como Mee, Defdot, Sem Remorso e Pele Fria. No show em Curitiba, ela assumiu o vocal já elétrico do Budang e honrou uma grande apresentação. Todo o arranjo com ela no vocal foi algo realmente mágico, que foi cada vez mais chamando o público para os mosh-pits.
Voltando para a banda catarinense, por mais que o split com a Jovens Ateus tenha sido o lançamento mais recente, o Budang tem trabalhado no primeiro álbum, que deveria ter saído ano passado mas com o calendário de turnês e outros contratempos acabou sendo adiado. Falando em turnê, essa que passou em Curitiba em fevereiro também tocou em três cidades de Santa Catarina: Blumenau, Criciúma e Florianópolis.
Sobre o show, com a Jê na voz, substituindo Gui, a energia já começou nas alturas, com दुक्ख (tradução de sofrimento para sânscrito), do EP split com a Jovens Ateus. Jê estava com seu moletom da Sem Remorso, mas logo tirou para revelar um top de Kim Petras. O baixista Pit ficou sem camisa após cerca de 5 músicas. Entre as canções estava Virgínia (Euthanasia), regravação do Budang para Virginia, do EP Morrer, Viver, Sorrir, Sangrar da banda Euthanasia de 1997, uma das primeiras do cenário manézinho/florianopolitano. A versão, lançada em maio de 2023, foi uma homenagem póstuma a Johnny Duluti, baterista da Euthanasia.
O Budang também tocou Morar no Bar, um de seus maiores hits, e Segunda Lei da Termodinâmica, provavelmente o maior sucesso considerando diferentes métricas. Ambos os lançamentos de 2022 compõem o EP Astrologia, Destino e Salmos. O show finalizou com a música mais política da banda – BLSNR = CANCÊR – que faz parte do EP Vendo Clio 2009, Prata 4 Portas!!, de 2020, e faz referência ao ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Uma boa deixa para lembrar que o underground (e a música no geral) também é político.
Rótulos, rótulos e mais rótulos...
O intuito desse texto foi pra falar de uma experiência única de um show, mas também pra tentar expressar o quanto um mesmo gênero musical pode variar dentro dele mesmo. O hardcore do Budang compartilha atributos com o grindcore da Snailmate, por mais que a sonoridade deles seja completamente diferente, a vibe de dois shows separados por apenas 30 minutos em posições opostas, por mais que servissem o mesmo público e fizesse parte do mesmo rótulo: hardcore.
Isso não serve só pra música, mas o vício inerente em tentar classificar tudo e comparar tudo transforma as mais puras emoções de felicidade em competição, quando não há prêmio para a vencedora. Ser fã de algo não significa automaticamente demonizar o lado oposto, a menos que estejamos falando de times de futebol, que não é o caso. A participação da Jê no show foi muito importante para salientar a mensagem que ela passa (e já disse em outras entrevistas): o hardcore é antipadrões, o diferente sempre será bem vindo no underground.