Cortando o ar gelado de uma densa floresta de coníferas, onde apenas os raios brancos do sol esgueiram-se entre as folhas das árvores, um cavaleiro solitário dedilha o seu banjo sobre as costas altas de seu cavalo malhado. Um chapéu de feltro marrom, com abas largas e firmes, descansa com uma elegância despretensiosa sobre a sua cabeça, oferecendo sombra contra a discreta luminosidade da mata e proteção contra as tempestades que varrem o território — sua copa alta, amassada nas pontas pelo uso constante, conta histórias de duelos ao entardecer e jornadas sob a lua cheia.
Essas memórias, enterradas nas profundezas de seu coração, emergem apenas quando o cowboy, em harmonia com os acordes de seu banjo, solta a voz para narrar histórias de bravura, romance e tragédia.
Exagerado? Fantasioso? Talvez. No entanto, na ficção do cinema, da literatura e dos videogames, os cowboys são figuras românticas de resistência, que desafiam o status quo de uma sociedade estadunidense recém-industrializada. Eles evocam os valores de um povo que parece ter esquecido de suas origens modestas e naturalistas — valorizando o bem-estar comunitário, a simplicidade e o contato com a natureza.
Porém, na história real dos Estados Unidos, os fatos são bem diferentes. Em 1862, Abraham Lincoln promulgou o Homestead Act, uma lei que concedia terras no oeste para quem se dispusesse a ocupá-las. No início, as cidades não tinham tribunais, exército, delegacias de polícia ou qualquer sinal de segurança oficial, e é justamente daí que surgem as histórias de pistoleiros implacáveis e duelos sangrentos.
"Ter fama de bom pistoleiro era uma maneira de ser respeitado e conquistar autoridade."
Explica o historiador Arthur Avila. Certo, mas o que isso tudo tem a ver com música? Bem, para além do country, a idealização do cowboy e do velho oeste está no imaginário de diversos artistas, que enxergam nessa figura uma persona solitária, romântica e aventureira, gerando identificação e inspiração. Hoje, vamos investigar esses casos, tentando decifrar por que os cowboys ainda são tão relevantes na música mainstream e underground.
Para acompanhar a leitura, preparamos uma playlist especial com algumas músicas dos artistas aqui citados, para que você não perca a trilha ou deixe o chapéu cair.
Little Joe
Em 1908, N. Howard "Jack" Thorp publicou o seu primeiro livro de músicas “western”, intitulado Songs of the Cowboys. Contendo apenas letras, sem partituras ou indicações de tempo, o livro foi muito popular a oeste do Rio Mississippi, entre jovens que tinham que adaptar as letras às suas próprias melodias, compondo livremente a partir de instrumentos como gaitas, banjos e tambores. Muitas dessas músicas não possuem autoria conhecida, mas entre as faixas destaca-se "Little Joe the Wrangler", escrita pelo próprio Thorp e dita como um verdadeiro sucesso dos saloons.
A música narra a história de um fugitivo solitário cuja vida acaba tragicamente quando seu cavalo cai durante uma debandada, esmagando-o. Além do desfecho mórbido, a letra também aborda o dilema do cowboy, que oscila entre viver uma vida pacífica, conformada pela sociedade civil, e uma existência livre e aventureira, constantemente enfrentando a morte e o perigo.
Essa ideia é amplamente explorada em diversas obras que assumem a temática de cowboys. Um exemplo marcante é o álbum colaborativo Waylon & Willie, de Waylon Jennings e Willie Nelson, dois dos maiores nomes da música country. Lançado em 1978, o disco inclui o hit "Mammas Don't Let Your Babies Grow Up To Be Cowboys", que expõe o egoísmo e a solidão da vida de um cowboy, e como muitos preferem morrer na estrada a se prenderem em um só lugar.
Cowboys ain't easy to love, and they're harder to hold
They'd rather give you a song than diamonds or gold
Lone star belt buckles and old faded Levi's
And each night begins a new day
If you don't understand him, and he don't die young
He'll probably just ride away
Contemporâneos de Jennings e Nelson, grandes artistas como Neil Young, Leonard Cohen, Townes Van Zandt, Nick Drake e Johnny Cash também exploraram temas e estéticas semelhantes para contar suas histórias, cada um à sua maneira e com um nível variado de pessoalidade. Nessa época, no entanto, ninguém pareceu abordar isso com a mesma intensidade e originalidade de Bob Dylan.
O jovem que chegou a Nova Iorque com apenas 19 anos, carregando a vida em uma mochila e o sonho de conquistar a cidade, parece ter saído diretamente das páginas de um conto romântico. Dylan compreendeu as questões de seu tempo como poucos, lutando pelos direitos humanos através de sua música em um país que, após a Segunda Guerra Mundial, crescia descontroladamente e afastava-se de seu próprio povo. O cowboy de Bob Dylan é a personificação de alguém que valoriza as coisas simples e encara os avanços industriais com desconfiança, à medida que esses começam a ofuscar o que é verdadeiramente essencial.
You looked for work and money and you walked a rugged mile
Your children are so hungry that they don't know how to smile
Ainda nessa toada, mas em um campo completamente diferente, o músico Elliott Smith fez sua estreia em 1994 com o álbum Roman Candle — incorporando elementos do folk, do indie rock e até mesmo do blues. O disco, além de apresentar características típicas da música western, como gaitas, a onipresença do violão em baladas ritmadas e o vocal solitário, também aborda temas como identidade, pertencimento, fuga e violência, mas, ao invés de pintar uma ambientação naturalista e melódica, adota uma perspectiva urbana
Olhando sob essa ótica, o cowboy é representado de duas maneiras distintas: uma é a visão crítica, que o vê como uma figura egoísta, que foge dos problemas da sociedade e refugia-se em uma vida de aventuras; a outra, mais positiva, o vê como alguém que, ao perceber a injustiça ao seu redor, escuta as angústias dos oprimidos e luta por eles, seja com a sua música ou com os seus revólveres. Em ambos os casos, o cowboy surge como a personificação de um herói deslocado de seu próprio tempo e que, perante as contradições de seu espaço, não consegue ficar parado.
Rocky Raccoon
Durante o auge do cinema western, entre as décadas de 50 e 70, Hollywood promovia a imagem do cowboy como o herói estadunidense por excelência, com a figura icônica de John Wayne e a presença marcante do cowboy da Marlboro na publicidade, solidificando o gênero no imaginário popular. Contudo, nas décadas seguintes, surgiu a tendência de "desconstruir" essa imagem heróica. O cowboy passou a ser retratado de maneira mais complexa e diversificada, muitas vezes como um bandido sujo e amargurado, emocionalmente intenso e multifacetado.
Entre os exemplos icônicos do cinema, temos Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood, O Segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee, e Ataque dos Cães, de Jane Campion — cada um desses abordando a masculinidade do fora da lei e ressignificando a imagem do cowboy de maneiras distintas.
“O Cowboy outsider chega na cidade para resolver o problema de ordem natural. Acontece que o cowboy já não é tão heroico assim e à cidade não cabe mais o ‘felizes para sempre’…”
Escreve o professor e crítico de cinema Philippe Leão. Na música, a desconstrução do western é um fenômeno mais recente e pode ser vista de várias maneiras na música pop, através de artistas que desafiam o conservadorismo habitual do country com elementos subversivos. Trabalhos musicais de artistas como Lil Nas X e Orville Peck brincam com a sexualidade, o fetichismo e a virilidade do cowboy - franjas, brilhos, máscaras, couro e chapéus são mais presentes do que nunca.
De forma oposta, alguns músicos abordam o tema de forma mais lúdica e intimista, interpretando a solidão do cowboy como um desafio a ser superado para encontrar-se consigo mesmo e resolver problemas internos. Nesse sentido, Mitski é um dos maiores exemplos com o seu álbum Be the Cowboy que, em suas próprias palavras, foi uma maneira de retomar as rédeas de sua vida.
“Eu estava na estrada há muito tempo, o que é muito isolador, e tive que administrar meu próprio trabalho ao mesmo tempo. Grande parte desse álbum foi sobre eu não sentir nada, estar completamente esgotada, mas tentando me reerguer, acordar e voltar a ser a Mitski.”
Explicou em entrevista. No entanto, para além desses casos recentes, os Beatles também são um exemplo surpreendentemente bom de como cowboys estão presentes na música. Claro, uma banda como essa é muito mais do que apenas referências ao velho oeste, afinal, os Beatles conseguem ser centenas de coisas ao mesmo tempo. Porém, vale a pena prestar atenção em algumas faixas de seu álbum homônimo (também conhecido como o “álbum branco”), especialmente “Rocky Raccoon”.
Composta pela dupla John Lennon e Paul McCartney, essa é uma paródia das baladas de Bob Dylan e Johnny Cash. A faixa narra a história de um cowboy chamado Rocky Raccoon que, após sua mulher fugir com um bandido chamado Daniel, propõe um duelo com o vilão. No entanto, em vez de sair vitorioso, Rocky é baleado e sofre uma derrota humilhante. Mesmo assim, ele responde que "é só um arranhão e tudo ficará melhor", representando um otimismo ingênuo.
Musicalmente, a faixa destaca um Paul McCartney inspirado, cantando com um sotaque sulista americano, junto da participação do produtor George Martin no piano, que traz consigo um som sujo e envelhecido, remetendo ao estilo das trilhas sonoras de filmes de velho oeste.
Por fim, ao abordar a desconstrução da figura do cowboy na música, é imprescindível destacar o álbum mais recente de Beyoncé, COWBOY CARTER. Sendo a segunda parte da trilogia que iniciou-se com RENAISSANCE, o disco busca recuperar a profunda conexão que a comunidade negra dos Estados Unidos tem com a música country — o que parece ter dado certo, pois seu grande single "Texas Hold 'Em" fez dela a primeira mulher negra do país a atingir o número 1 nas paradas country de sucesso.
O que muitos esquecem, devido às representações majoritariamente brancas de cowboys, é que esses vaqueiros, na realidade, surgiram de uma rica herança multicultural. Beyoncé, ao se apropriar de diversos símbolos do velho oeste estadunidense, como o cavalo branco, o chapéu e a bandeira — anteriormente associados a grupos conservadores — destaca como a música country, o cowboy e o velho oeste são, essencialmente, sobre libertar e empoderar.
“As raízes da música country estão profundamente enraizadas em muitas famílias negras como a minha, mesmo naquelas de nós que nunca viveram “no Sul”. Será sempre a música dos nossos antepassados que ainda toca a nossa alma e nos leva adiante, não importa que rótulo comercialmente aceitável seja imposto à ela.”
Escreve Roxanne Jones, à CNN.
Através dessas leituras, pode-se concluir que o cowboy é um símbolo semiótico, um ícone autoimposto pela sociedade estadunidense que, além de ser utilizado como um arquétipo para contar histórias, também representa uma parcela do país que ainda enxerga-se como a proprietária dessas terras. Por isso, essa figura deve ser questionada e subvertida, seja de maneira extravagante, romântica e irônica, ou sensível e visceral.
Johnny Guitar
De forma curiosa, esse breve apanhado ilustram como a estética, a cultura e as ideias do velho oeste ainda inspiram artistas, seja de forma direta ou indireta. Ao reinterpretar e ressignificar a figura do cowboy, eles não apenas mantêm a relevância desse arquétipo, mas também exploram suas complexidades e contradições. A influência desse personagem transcende o tempo e o espaço, moldando narrativas contemporâneas e oferecendo novas perspectivas sobre identidade, coragem e a luta contra a injustiça.
Em uma última análise, essas representações demonstram que o espírito do cowboy, em suas diversas formas, continua a ressoar e a inspirar reflexões sobre o papel das pessoas comuns na sociedade moderna.
literalmente...LITERALMENTE EU