Sophia Chablau, Felipe Vaqueiro e o poder da amizade
Um compacto que passa por São Paulo, Salvador e até mesmo Portugal
A música brasileira sempre encontra formas de se reinventar e superar barreiras. Entre Salvador e São Paulo, duas cenas riquíssimas encontram-se através do compacto Nova Era/Ohayo Saravá, um lançamento colaborativo de Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro. Para celebrar esse trabalho, a Repeteco conversou com os artistas sobre a parceria, a troca de influências e o que esse lançamento representa para eles.
Os nossos leitores já estão familiarizados com os protagonistas desta entrevista. Sophia Chablau já foi destaque em dois textos anteriores, um aprofundamento sobre sua banda, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, e uma entrevista ao lado de Téo Serson, baixista e compositor do grupo. Felipe Vaqueiro, por sua vez, é vocalista e guitarrista da Tangolo Mangos, banda que cobrimos em um show no 92 Graus, em agosto de 2023. A relação entre os dois artistas foi se fortalecendo nos bastidores da música independente, até culminar na colaboração que deu origem a esse compacto.
Em uma conversa descontraída, falamos sobre a conexão entre os dois, o processo de composição das faixas, os desafios de lançar músicas por diferentes selos no Brasil e em Portugal, e os significados por trás dessa suposta nova era.
O surgimento do compacto
Nossas primeiras perguntas foram sobre como esse projeto colaborativo surgiu e como a amizade entre Sophia e Felipe se fortaleceu. Entre turnês e viagens, os dois se cruzaram e encontraram uma sintonia criativa única, resultado de um interesse genuíno no trabalho um do outro.
CHABLAU: Eu e o Vaqueiro nos conhecemos na turnê [que uniu as bandas Tangolo Mangos e Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo] e nos tornamos muito amigos, nossa amizade realmente 'deu match'. Como o Vaqueiro sempre diz, eu já conhecia ele por meio da Tangolo Mangos.
VAQUEIRO: A gente sabia da existência um do outro sem nunca ter falado diretamente, mas consumindo o trabalho de cada um, ouvindo e recebendo comentários indiretos.
CHABLAU: Uma pessoa muito importante nesse processo foi o Zé Ibarra, porque ele me mostrou a música ‘Hipóteses’ da Tangolo Mangos e me disse ‘eu conheci esse cara que você vai adorar, essa música é a sua cara, vocês com certeza vão se dar bem’. Eu ouvi bastante e achei a letra muito boa.
A música em questão, “Hipóteses, Telhas, Pandas, Ovelhas”, lançada pela Tangolo Mangos em 2020, serviu como um primeiro ponto de conexão entre os dois músicos. A admiração mútua rapidamente se traduziu em uma parceria que iria pata além do respeito artístico.
VAQUEIRO: Acho que esse encontro veio para dar vazão a muitas músicas. Independente de irem para outros intérpretes ou nossas próprias bandas, existe esse desejo coletivo de compor, gravar e expandir nossas possibilidades. O que motivou o compacto foi, acima de tudo, nosso grande carinho por essas músicas específicas. E vamos fazer mais…
Trabalhar entre amigos tornou o processo leve e divertido, apesar do desafio da distância. Enquanto Sophia está baseada em São Paulo, Felipe mora em Salvador, e conciliar rotinas distintas exigiu jogo de cintura.
VAQUEIRO: A gente se conectou bem quando fui para São Paulo fazer um show no Museu da Imagem e do Som (MIS-SP) a convite da Sophia. Ela tinha uma verba a mais e me chamou, disse que eu podia ficar na casa dela e passaríamos um tempo tocando e criando coisas novas. Foi um período experimental, sem pressa. Quando tivemos os shows juntos, pude conhecer mais da Sophia além do que está gravado, e acredito que ela também me conheceu melhor. Nós tínhamos um mapa mental, algumas referências, Marcelo Cabral e Biel Basile, e o resultado foi muito orgânico. A Sophia tem a visão além do alcance para enxergar pequenos espaços de tempo e encaixar projetos. Depois disso, foi um malabarismo nosso para fazer dar certo.
O compacto Nova Era/Ohayo Saravá foi lançado simultaneamente no Brasil pelo selo RISCO e em Portugal pelo Cuca Monga, que também disponibilizará um lançamento físico para o projeto. Sobre essa ponte construída com o selo português, Sophia destacou a influência do engenheiro de som Gui Jesus Toledo.
CHABLAU: Quando fui para Portugal, fiz uma turnê por quatro cidades, e uma delas foi Lisboa, onde fica a sede da Cuca Monga. O Gui, engenheiro de som do RISCO, sugeriu que eu conhecesse o Domingos, do Capitão Fausto, que é da Cuca Monga. Ele gostou do som, e quando mostrei a Tangolo Mangos e uma prévia, eles se interessaram. A rádio em Portugal funciona de um jeito diferente, há muito espaço para pessoas fazendo coisas legais. É bom ter essa ponte, transformar nossos sonhos em algo economicamente viável, a troca tem sido muito boa.
Sobre o fato de serem dois artistas de cenas diferentes e distantes, Vaqueiro e Chablau destacaram que a troca de estilos foi natural, muito pela influência da música paulista em Salvador e da música baiana em São Paulo. Além disso, como músicos que viajam o Brasil em turnês, ambos já compartilharam espaços onde eram "de fora".
VAQUEIRO: É interessante como, por mais que sejamos de lugares diferentes, em algum momento da nossa trajetória passamos pelos mesmos lugares. Os lugares onde tocamos são os mesmos, já tocamos no mesmo festival em Salvador e em Natal, e também juntos em Maceió e João Pessoa. Cada um cresceu de uma forma diferente, em lugares diferentes, escutando coisas diferentes, mas tínhamos coisas em comum, e isso nos complementa bastante.
CHABLAU: Sim, elE me traz informações sobre o carnaval de Salvador, uma visão que eu não conhecia dos desfiles e blocos. Temos um respeito pela bagagem que cada um traz e um interesse genuíno no que o outro vive.
Ainda sobre fazer shows em lugares diferentes, aproveitamos a oportunidade para parabenizar Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo pela apresentação em Barcelona no Primavera Sound e pela realização de sua primeira turnê internacional. Perguntamos sobre a recepção de públicos distintos, para Sophia, fora de São Paulo, e para Felipe Vaqueiro, fora de Salvador.
CHABLAU: Sempre me surpreende, nunca foi ruim. Teve uma vez, em João Pessoa, onde uma pessoa que estava no TEA me deu um fidget spinner dizendo que era o primeiro show dela, e me presenteou com o que ela mais gostava no mundo. Isso foi muito tocante. As pessoas são realmente incríveis e o gesto foi muito carinhoso.
VAQUEIRO: Essas coisas são o que mais fazem valer a pena. Mesmo que a conta não feche no final, ver que você tocou para alguém que realmente se esforçou para te ver é transformador, especialmente na nossa realidade.
CHABLAU: É uma maneira de acessar pessoas que podem ser influenciadas por outros caminhos. Muitas vezes, durante um show, alguém me diz algo que fica na minha cabeça. Vou citar o show do Planet Hemp no Koala Festival, que foi um dos melhores shows da minha vida. Quando o BNegão parou o show para falar sobre a Palestina, foi algo que me marcou profundamente. Ele me mostrou que eu também poderia usar essa plataforma para falar sobre algo que penso o tempo todo.
Para fechar o primeiro bloco de perguntas, a dupla respondeu se esses singles poderiam sinalizar novos capítulos para essa amizade, se há planos para futuros lançamentos ou novos projetos no caminho.
CHABLAU: Esse compacto tem apenas sete minutos. Mas, como o nome sugere, é compacto, há algo grande que foi condensado. Muita coisa está por vir, sinto que encontrei um parceiro de composição, e isso é algo muito raro para mim. A maior alegria para um músico é encontrar alguém com quem você pode dizer ‘vamos fazer muitas coisas juntos’.
VAQUEIRO: Acho que é isso, né? O mundo está cheio de pessoas incríveis e de possibilidades a serem descobertas. A Sophia tem me ajudado muito a enxergar essas possibilidades, mesmo quando sou um pouco ansioso e começo muitas coisas sem terminar.
Nova Era e o caráter cíclico das coisas
“Nova Era”, com vocais de Sophia Chablau, surge como uma reflexão sobre fins, términos e recomeços. Perguntamos à artista se a sensação de libertação, associada à frustração de estar presa a um ciclo eterno, teve origem em alguma experiência pessoal. Chablau explicou que, ao contrário de quando compôs para os dois álbuns da Enorme Perda de Tempo, Nova Era foi escrita sem que ela estivesse passando por um término. Ela usou a música para explorar outra vertente emocional, sem a necessidade de buscar um "escape”. Explica:
CHABLAU: Tem poucas músicas que eu fiz nesse estado em que estou, então pra mim esse lançamento é algo meio inédito. Eu quase sempre escrevo quando estou triste, seja por terminar algo ou pensando em amores perdidos, em sofrimento. Essa música não é sobre sofrimento, ela é sobre isso.
VAQUEIRO: É meio pleno até, se você se coloca como um narrador de fora, parece que está acontecendo uma briga e você aceita aquilo de certa forma.
CHABLAU: A cena que vinha na minha cabeça era tipo duas pessoas prestes a ter um remember, mas elas não tinham motivo porque uma delas disse 'não, esse fim de festa vai dar merda'. Eu estava escutando muito ‘Fim de Festa’, do Itamar Assunção, e era tudo o que eu queria que as pessoas dissessem nessa situação, como 'não vamos cair nessa'. Espero que faça bem para pessoas que estão passando por isso.
Sem o uso da expressão "nova era", a música poderia ter sido apenas sobre términos, mas a escolha da expressão traz uma ideia de recomeço. Para ela, Nova Era é mais sobre a natureza cíclica das coisas, sem o tom melancólico presente em outras músicas de sua autoria. Ela também destacou seu gosto por brincar com a semiótica em suas músicas, citando dois exemplos de faixas que, apesar de terem uma sonoridade mais leve, têm mensagens muito mais tristes: “Segredo” e “Delícia/Luxúria”.
CHABLAU: Eu confesso que esse último ano foi complicado para mim. Aconteceram coisas muito tristes, difíceis de lidar, mas ao mesmo tempo havia momentos de felicidade por outras coisas. Somos seres complexos, então nossa música também pode ser complexa. Essa música também tem isso. Se alguém quiser regravar ela de forma mais triste? A vontade. Eu acho mais legal ainda. Eu adoro ver regravações das minhas músicas e adoro ver como as pessoas as interpretam. Às vezes, você está na merda e precisa de uma música que te coloque pra cima. Às vezes, é só andar de bicicleta e ir embora. Essa é minha vontade de fazer algo mais palatável, que entre no seu ouvido sem uma guitarra destruindo meu cérebro. Por mais que eu goste de fazer músicas assim, eu não sou só isso.
Mas afinal, o que significa Ohayo Saravá?
A canção, que traz Felipe Vaqueiro como vocal principal e Sophia Chablau como coro, mistura diferentes línguas em uma única frase. O título, por exemplo, funde uma saudação japonesa, ohayo, com o saravá, uma expressão usada em religiões de matriz africana, apesar de seus significados serem parecidos. Vaqueiro destacou outro elemento presente na música: o uso da rotina, explorado através de verbos.
VAQUEIRO: A música tem esse personagem 'Sol', inspirado no Teletubbies, sabe? ‘Sometimes the Sun likes to come out to play, greet him with ohayo, saravá’. Mas, em algum momento, a música vira para o português, e é quando começa a narrativa que diz ‘anã vermelha, a minha estrela já não brilha’. No início é mais metafórico, mas depois comecei a pensar na vida do Sol, o que me atravessou muito quando eu era criança, quando pensava sobre a finitude da vida e da matéria. As estrelas explodem, as condições atmosféricas mudam, e a gente não pode fazer nada para mudar isso. A parte sobre a rotina veio depois, quando eu escrevi ‘amanhã você vai acordar, se cansar, trabalhar, retornar, descansar, se deitar’. Só verbos, rimei verbo com verbo.
Vaqueiro ainda destacou que a mistura de idiomas na letra foi inspirada por uma das canções de Sophia, “Hello”, que ele teve a oportunidade de ouvir novamente durante uma viagem feita com Zé Ibarra. Foi ele quem o apresentou à música, dizendo com seu típico sotaque carioca: “essa menina é uma gênia". A mistura de idiomas ficou na mente de Vaqueiro e foi incorporada em Ohayo Saravá.
Por fim, Felipe Vaqueiro explicou que a escolha do nome Ohayo Saravá veio de sua paixão por animes e da influência de seu avô. Ele comentou que ohayo é uma das primeiras palavras que se aprende ao estudar japonês, assim como konichiwa, e são expressões que têm um som agradável e marcante. O saravá, por outro lado, ele sempre ouviu seu avô dizer, embora não tenha vivido toda a experiência de participar de terreiros. Quando perguntado se pretende gravar algo em japonês no futuro, Vaqueiro revelou que o baixista da Tangolo Mangos, Deno, já compôs uma música nesse idioma, mas o arquivo foi perdido em um HD que queimou. Ele disse que gosta de "reletrar" canções japonesas para o português, uma maneira de transformar e adaptar a sonoridade para algo mais próximo da sua vivência.
Sempre volta
Concluímos a entrevista perguntando sobre os próximos passos da parceria entre Sophia e Felipe, e se novos lançamentos estão a caminho. A resposta foi, sem dúvida, empolgante. Se Nova Era simboliza um recomeço, é possível que esteja apenas sinalizando o início de algo ainda maior — não seria surpreendente se uma nova onda nacional surgisse daqui, através dessas jovens vozes da música brasileira. Escute o compacto aqui.
Vi um show duo deles em curitiba, foi lindo a conexão deles na música e além palco.
Que texto mais lindo! Que entrevista sensacional.