Spiritbox e a principal voz feminina do metalcore
A magia de Courtney LaPlante liderando um metal distorcido e desconstruído
Falar de mulheres no mundo da música é chover no molhado. Aqui na Repeteco já falamos de tantas artistas extremamente talentosas, de tantas categorias musicais diferentes, que partem do pop experimental, como FKA Twigs e Charli XCX, variam até chegar no rock nacional, com Sophia Chablau e Olivia Yells, até nomes menos conhecidos da grande mídia, como a alemã Sibylle Baier. O universo musical tende a ser, na sua maior parte, receptivo às experiências femininas. Mas ainda há lacunas nessa representatividade, principalmente nos subgêneros do rock e do metal.
Parece haver, para alguns fãs, algumas respostas coringas para certos questionamentos a respeito da participação feminina no rock. De maneira mais clássica, as brilhante Joan Jett e Janis Joplin; na contemporaneidade, Amy Lee do Evanescence; no pop-punk, Hayley Williams do Paramore. Como se apenas uma representante fosse o bastante para se mostrar diverso, ainda que o talento delas seja indiscutível. Historicamente, o metal e suas vertentes se mostram muito mais favoráveis ao masculino, mas a possibilidade de mudança é real.
O primeiro grande movimento, que reabre a discussão de gênero no metal de maneira geral, foi a entrada de Emily Armstrong no Linkin Park, que teve a difícil tarefa de substituir Chester Bennington após sua trágica morte em 2017. A recepção, tanto do público quanto da crítica, foi positiva, esgotando dois shows no Allianz Parque em outubro de 2024 e já tendo anunciado a volta pro Brasil no final de 2025. Enquanto o Linkin Park, agora sob liderança feminina, mostra que a virada de chave no nu metal é possível, são dois nomes que se destacam no metalcore contemporâneo: Poppy e Courtney LaPlante.
Faço questão de colocar os dois nomes juntos para destacar um acontecimento negativo recente, que mostra que o preconceito de grande parte da mídia ainda existe. Durante o tapete vermelho do Grammy desse ano, em fevereiro, LaPlante foi entrevistada por um jornalista achando se tratar de Poppy, o que por sorte foi recepcionado de maneira bem-humorada pela cantora, que se manteve no personagem e assumiu, durante aquela pergunta, o papel de Poppy. A mensagem no final dela foi de que o prêmio que ambas estavam indicadas, melhor performance de metal, nunca foi para uma mulher, e já estava na hora de uma finalmente ganhar.
Mas afinal, quem é Courtney LaPlante, qual o diferencial de sua banda, Spiritbox, das outras do cenário metalcore e quais os principais feitos dela?
O princípio
Antes do Spiritbox nascer, Courtney LaPlante e seu atual marido (a época noivo), o guitarrista Mike Stringer, faziam parte da banda estadunidense iwrestledabearonce (IWABO), focada em metalcore, que cessou em 2016, pouco depois da saída do casal, que queria fundar seu projeto musical. Os canadenses da Colúmbia Britânica deram início ao Spiritbox como uma dupla, chamando o antigo baterista da IWABO, Mikey Montgomery, para assumir o papel na gravação dos primeiros singles. Seu papel foi temporário, pois Ryan Loerke assumiu a bateria, de maneira fixa, em 2018. No mesmo ano, Bill Crook virou o primeiro baixista oficial da banda, sendo essa a formação original do Spiritbox.
Entre 2017 e 2020 a banda foi lançando diversos singles, com Courtney LaPlante no vocal sendo seu principal diferencial. Foram dois compactos (em 2017 e 2019) e dois singles: “Rule of Nines” e “Blessed Be”, em preparação para o primeiro álbum de estúdio, com previsão para metade de 2020. Nesse momento, a pandemia de Covid-19 acabou com a produção do Spiritbox, tanto do álbum, como da primeira turnê europeia marcada. A banda voltou a lançar um single em julho de 2020, “Holy Roller”, fruto de trabalhos pré-pandêmicos e primeira música com Zev Rosenberg, baterista que substituiu Loerke, que havia saído da banda no início do ano.
Entombed to die
In catacombs of restless bones
Consumed Alive
This is my home, I’m waiting here for you
Blessed Be
O que significa um azul eterno?
Depois do sucesso de Holy Roller e a premissa de um primeiro álbum de estúdio, o Spiritbox foi designado melhor nova banda de rock pela revista Kerrang! em 2020, além de ter seu nome em listas de discos mais aguardados para 2021, mesmo nas restrições pandêmicas que evitavam a realização de shows. A divulgação orgânica, ainda que digital, foi um sucesso para a banda, que ainda lançou os singles Constance e Circle With Me.
I held the power of a dying sun
I climb the altar and I claim my place as God
Circle With Me
O álbum Eternal Blue foi, então, lançado em setembro de 2021, após muita antecipação de veículos como Alternative Press e a própria Kerrang!. Muito pode se discutir sobre o significado do nome “azul eterno”, pois além da simbologia da cor azul ter relação com a tristeza (não só no filme Divertida Mente), na língua inglesa é um jargão comum para solidão e/ou depressão.
Ainda que a banda, personificada em LaPlante, o tenha definido como um álbum de metalcore, a enxurrada de influências transforma Eternal Blue num disco multilinguístico, que utiliza da intertextualidade de gêneros musicais. A temática das letras aborda desde relacionamentos tóxicos, em “Hurt You”, até o medo para com o futuro, em “We Live In A Strange World”. Os membros do Spiritbox sempre deixaram claro que suas influências não estão presas ao metal, ainda que bandas como Slipknot, Deftones e The Architects sejam referências diretas (aliás, o vocalista desta última, Sam Carter, está presente na canção “Yellowjackets”).
As referências saem até mesmo do rock, chegando no pop experimental de Charli XCX e o vocal dos rappers da Wu-Tang Clan, ou até mesmo em new wave de Depeche Mode e Tears for Fears. O Eternal Blue chegou até a posição 13 da Billboard 200.
Pelas restrições da Covid-19, a banda só pôde sair em turnê em 2022, acompanhando os britânicos do Bad Omens. Logo após a volta pro Canadá, o baixista Bill Crook deixou o Spiritbox e foi substituído por Josh Gilbert. O sucesso do grupo trouxe apresentações em festivais, como o Download Festival 2022, no Reino Unido, mas também trouxe polêmicas, principalmente no que envolve o vocalista do Falling in Reverse, Ronnie Radke. Após o anúncio de uma turnê conjunta em março de 2023, o Spiritbox foi contestado do porquê se associar a um artista com temperamento explosivo, falas transfóbicas e denúncias de agressão sexual. Em menos de uma semana, LaPlante anunciou, em nome do Spiritbox, a retirada da banda da turnê.
Sobrevivendo a um mar de tsunami
O que alavancou a construção desse texto vem do lançamento mais recente do Spiritbox, o álbum “Tsunami Sea”, de março de 2025. Para fazer justiça falando do novo disco, nada mais justo que explorar toda a carreira de uma das bandas mais irreverentes do cenário metalcore atual. Vindo do sucesso do Eternal Blue, a banda lançou três singles em 2023: “The Void”, “Jaded” e “Cellar Door”, enquanto se preparava para uma nova turnê pelo Reino Unido junto do Korn. Nesse meio tempo, o Spiritbox anunciou a produção de seu segundo álbum de estúdio, enquanto Courtney produziu colaborações com a cantora Megan Thee Stalion.
O primeiro single da gravação ditou o tom esperado, o metalcore que não se prende aos estigmas do gênero, mas que tem uma clara mensagem no extravasar as frustações. “Soft Spine” é um grito para quem não está do seu lado, para quem não gosta de seu trabalho ou para quem tem algo contra ela. A música seguinte das preparações do Tsunami Sea manteve o alto nível, “Perfect Soul” tem um trabalho de voz mais suave, mas segue com uma letra emotiva e um arranjo de metalcore muito bem feito. O último single foi “No Loss, No Love”, com elementos descritos pelo guitarrista Mike Stringer como mais experimentais e diferentes.
Cover me up before you go
So delicate, the orchids grow
Buried under melted snow
So I call out your name and let it die slow
Perfect Soul
A crítica musical tem sido favorável a essa mescla de elementos do Tsunami Sea, com algumas músicas presentes no metal distorcido (djent), com influências do drum and bass e o pop eletrônico, sem esquecer do metalcore que primeiro conquistou o público.
Colhendo os frutos do trabalho
O Spiritbox, liderado por Courtney LaPlante, tem ganhado cada vez mais holofotes, tanto do público, como da crítica, como comentamos anteriormente. É importante falar, também, que a banda já possui duas indicações ao Grammy, mesmo com a controvérsia já destacada pela gafe jornalística. Em 2024, o grupo foi indicado em melhor performance de metal, perdendo para o Metallica com “72 Seasons”. Em 2025, na mesma categoria, veio mais um revés, dessa vez para o Gojira com “Mea Culpa (Ah! Ça Ira!)”, apresentado na abertura das Olimpíadas de Paris. Em entrevista após as premiações, LaPlante falou não se importar com a derrota na categoria, pois a histórica apresentação do Gojira foi a mais importante do metal nos últimos anos.
Como não se mensura sucesso apenas com prêmios e números de streaming, é preciso falar sobre a primeira vinda do Spiritbox para o Brasil, em novembro de 2024, parte de um Allianz Parque lotado para o Bring Me The Horizon, acompanhados de Motionless in White e The Plot In You. O show dos canadenses foi o segundo da noite, quando o sol estava se pondo, e conquistou todo o público com seu metalcore distorcido e influenciado por outras vertentes. Não só todos os membros possuíam uma presença de palco marcante, como cativou até mesmo quem não conhecia, chamando o público para moshpits enérgicos. O show foi tão marcante que até mesmo um membro da pista acendeu um sinalizador, proibido pela organização do evento mas que estava sendo preparado para o último show da noite, no momento de “Shadow Moses”.
Para o final de 2025, a banda terá como compromisso acompanhar parte da turnê mundial do Linkin Park, com datas também confirmadas para o Brasil, mas ainda sem os nomes que abrirão os shows. Uma apresentação conjunta bem simbólica, mostrando que o espaço feminino no metal pode ser, além de um sonho, possível.