Stop Making Sense: pensar cinema e performance
Explorando os aspectos que tornam o filme tão original
Não é fácil falar de filmes de concerto. Sempre me vejo presa, divagando pelos aspectos técnicos que conferem esse gênero a determinada obra. É curioso porque o conteúdo, nesses casos, quase sempre fica em frente à forma. Digo por mim mesma, não tenho lembrança de assistir a um filme-concerto de algum artista que não despertasse meu interesse. Sei que vi In Rainbows From The Basement, Songs For Drella, Pink Floyd: Live at Pompeii, entre muitos outros, por puro interesse pelos atos musicais por trás, sem levar em conta muitos aspectos cinematográficos da produção.
Mas há algo de especial em Stop Making Sense. Há algo que me faz pensar muito mais em como a obra opera cinematograficamente do que musicalmente — mesmo que, claro, o segredo esteja na interseção de ambos. Dirigido por Jonathan Demme, que também assina O Silêncio dos Inocentes (1991) e Filadélfia (1993), o filme de 1984 retornou às salas de cinema neste ano, devido a uma restauração em 4K realizada pela produtora A24, em homenagem aos seus 40 anos. Ainda com a obra ressoando em mim, hoje na Repeteco tento traduzir a experiência que tive na sala de cinema, além de apresentar os motivos pelo qual vejo Stop Making Sense como algo incomparável.
Same as it ever was
Não é preciso investigar tecnicidades para perceber onde repousa a graça do filme. Nesse caso, a resposta está próxima do mais alheio dos espectadores. Está no próprio espetáculo operado em tela, nos movimentos de David Byrne, na integração da banda — e na invocação de uma estranha vontade de emular comportamentos de um show dentro da sala de cinema. Talking Heads realiza uma performance que justifica toda cinematografia por trás, que parece feita para ser capturada por lentes e transformada em eternidade.
Há até uma certa injustiça em colocar Stop Making Sense na mesma caixa de outros filmes-concerto, quando a obra se destaca tanto da simples captura de uma apresentação ao vivo. Gravando a banda ao longo de três noites de show no Pantages Theater de Hollywood, Jonathan Demme usa seu olhar para traduzir toda a inventividade performática do grupo em cinema, costurando planos até ser capaz de transformar os membros da banda em verdadeiros personagens.
Por 80 minutos, nossos sentidos aguçam frente a uma perfeita união entre música e cinema. Os intensos close-ups em instrumentos e rostos, a sensibilidade da iluminação que captura as características de cada faixa tocada, as coreografias inventivas, a energia catártica e a sensação de que são as pessoas certas, no lugar certo, criando a música que foram feitas para criar. Todos esses aspectos nos fazem compreender os motivos da obra ser considerada revolucionária.
This ain’t no fooling around
Não era exagero quando comentei que David Byrne, Chris Frantz, Jerry Harrison, Tina Weymouth, e todos os músicos de apoio no palco tornam-se personagens nas lentes de Jonathan Damme. Há, de fato, espaço para essa transformação dentro da esfera fílmica.
A narrativa, portanto, inicia-se com Byrne caminhando até o microfone, acompanhado apenas de seu violão em um palco de escombros para realizar uma versão acústica e mais contida do clássico “Psycho Killer”. A cada faixa, então, o palco recebe um novo personagem até que a banda finalmente esteja completa — e a performance que começa introspectiva torna-se, progressivamente, mais catártica. Enxergo esse show como uma celebração da personalidade que adquirimos quando estamos cercados de pessoas que nos completam e fazem bem. É contagiante energia que todos alcançam coletivamente, e impressiona comparar o David Byrne do início do filme com o que vemos se desenvolver ao longo das faixas. Há liberdade, esquisitice, e a alegria genuína que surge dessa expressão conjunta através da música.
Stop Making Sense também é uma ode à potência das coisas mínimas. Elementos simples como um abajur ou um terno grande, são elevados à grandes símbolos dentro do contexto da performance. Acho que a mágica do filme está justamente nesse aspecto, à medida que observamos como os elementos mundanos adquirem outro significado. A dinâmica que ocorre entre as pessoas no palco também se encaixa nisso. Tudo é transparente, todos se permitem serem vistos. E é curioso, pois shows geralmente são pensados para serem observados de longe, já que a distância confere certo misticismo á performance e aos artistas. Aqui não.
Vemos a equipe de apoio trabalhando, as micro expressões da banda, o que ocorre por trás do palco, as preparações entre faixas, os próprios enchimentos do terno gigante de Byrne, enfim. Não há mais essa distância, não há onde se esconder de uma câmera que escolhe tornar o espectador confidente de tudo. E presenciar esses aspectos de perto não remove a grandiosidade do show — pelo contrário, a amplifica porque nos sentimos também um pouco parte do espetáculo. E é essa mais uma das belezas de Stop Making Sense: saber encantar com o trivial.
You might get what you’re after
Lembro de ter comentado com meus amigos, à caminho da sala de cinema, que tinha a sensação de estar indo a um show. Parecia que estava prestes a encarar multidões e lutar por um espaço com boa visão do palco. É curioso esse efeito dos filmes de concerto, essa chance de chegar mais próximo de algo, muitas vezes, inalcançável.
E realmente, os sentidos ficam confusos, especialmente em uma obra como Stop Making Sense. Fui tomada por constantes aplausos silenciosos e gritos velados durante a sessão, afinal, o filme contribui para que sejamos transportados ao tempo e espaço em que ele se situa. À medida que a performance progride, nos vemos como parte do público diverso deste teatro de Hollywood em 1983, sentindo o calor e energia da banda de perto, capazes de quase encostar no terno gigante de Byrne. Seja o ótimo trabalho de som, a montagem quase imersiva, a similaridade da sala de cinema com um local de espetáculos, tudo se constrói para possibilitar esse distúrbio de sensações. É um filme que implora para ser visto na tela grande.
Mas… no fim das contas, somos os espectadores de um filme ou a plateia de um show? Particularmente, eu gosto de acreditar que Stop Making Sense nos permite ser ambos.