Suspiria: música e horror
Algumas palavras sobre as trilhas sonoras dos filmes de Argento e Guadagnino
A trilha sonora pode ser um dos elementos mais cruciais na hora de construir uma narrativa. No universo do cinema de horror, essa ideia se eleva à máxima potência, ao que as músicas se mostram capazes de criar atmosferas únicas e despertar as emoções desejadas com maior intensidade.
Neste contexto, hoje comparamos as composições de Suspiria, dirigido por Dario Argento em 1977, com as de sua recriação feita por Luca Guadagnino em 2018. Apesar de dividirem o mesmo ponto de partida narrativo, são filmes extremamente distintos entre si e servem como um convite para pensar nas diferentes emoções que uma trilha pode incitar, consoante a estética que se quer atingir.
A ideia original do texto, admito, seria abordar apenas a trilha do filme original. No entanto, ao revisitar a irresistível criação de Thom Yorke para o remake, enxerguei a oportunidade de unir, em uma única edição, as características únicas de cada uma das sonoridades — e o quão bem representam seus respectivos filmes.
O clássico
Em 1977, o diretor italiano Dario Argento apresentava ao mundo uma das maiores e mais influentes obras primas do terror: Suspiria. Se, previamente, outros de seus grandes filmes como Profondo Rosso (1975) e O Pássaro das Plumas de Cristal (1970) não chegaram muito além das fronteiras da Itália, com Suspiria essa barreira foi ultrapassada, permitindo que seu horror alcançasse novos públicos.
É história de violência e mistério ao redor da jovem Susan que acompanhamos no decorrer das cenas. Dançarina, a protagonista viaja à Alemanha para estudar em uma prestigiada escola de ballet — até que começa a presenciar acontecimentos estranhos e mortes suspeitas, que, em pouco tempo, a fazem descobrir que a instituição, na realidade, se trata de um covil de bruxas. A narrativa é livremente inspirada na coleção de ensaios Suspiria de profundis, do escritor inglês Thomas de Quincey, especialmente em uma sessão do livro baseada em sonhos do autor, em que ele descreve três “mães da dor”: Mater Lacrimarum, a mãe das lágrimas; Mater Suspiriorum, a mãe dos suspiros; e Mater Tenebrarum, a mãe das trevas.
Fica claro, portanto, que Suspiria mergulha no mundo sobrenatural, e é a composição da banda de rock progressivo italiano Goblin que complementa os visuais únicos e confere toda intensidade que a obra exige. Nos primeiros instantes, já é possível sentir a sobrecarga da trilha gritante sobre os créditos e cenas iniciais.
Goblin já havia trabalhado com Argento em Profondo Rosso, e a história da colaboração é, no mínimo, curiosa. De última hora, Argento procurou Cláudio Simonetti, tecladista do Goblin — nascido em São Paulo, inclusive —, e disse que a banda teria apenas uma noite para escrever as canções da trilha e um dia para gravá-las. Se conseguissem, as faixas seriam incluídas no filme. Felizmente, tudo deu certo. Mesmo não conseguindo se adequar ao prazo absurdo do diretor, a banda conseguiu finalizar o processo de produção em apenas 10 dias e a trilha sonora foi um sucesso sem precedentes.
Porém, agora com mais tempo, Goblin teve espaço para preparar uma fusão de guitarras, violinos, órgãos e sintetizadores, dando luz à um som singular, que combina estímulos auditivos aos visuais saturados de Suspiria. Essa estética sonora selvagem e cacofônica acabou se tornando um dos traços mais marcantes do filme.
Argento estava empenhado em tornar Suspiria o mais aterrorizante possível. Em entrevista, Cláudio Simonetti contou que o diretor faia questão de tocar as composições da banda no set, para incitar o sentimento de terror nos atores. De acordo com o tecladista, Argento acreditava que a música era o que provocaria o medo, mesmo quando o medo não era visualmente aparente: “Preciso que o público sinta que as bruxas ainda estão lá, mesmo que não estejam realmente na tela”, dizia a Simonetti. Isso fez com que a banda criasse, para compor as cenas, uma repetição distorcida de sussurros da palavra witch — bruxa, em inglês —, que pode ser ouvida em vários momentos do filme.
O legado da criação de Goblin pode ser observado até hoje na cena de terror. John Carpenter, um dos mais renomados diretores de terror da atualidade — O Enigma de Outro Mundo (1982), Halloween (1978), Eles Vivem (1988) —, admitiu se inspirar muito na sonoridade da trilha de Suspiria, e até desejar tê-la escrito quando a escutou pela primeira vez. Referindo-se a Cláudio Simonetti e sua composição, disse: “Oh meu Deus, o que é isso? Tem o som da cítara indiana. Gênio absoluto. Ele e eu nos tornamos amigos.”
A reinvenção
Embora não alcance o mesmo impacto revolucionário de seu antecessor, Suspiria (2018), de Luca Guadagnino, ainda merece destaque. O filme não busca simplesmente replicar o sucesso do original de Dario Argento, mas sim reimaginar sua essência de uma maneira completamente nova. Guadagnino demonstra uma compreensão profunda da história original, usando-a como ponto de partida para explorar novas camadas de significado e complexidade na trama.
Aqui, os visuais efervescentes de Dario Argento são substituídos por uma estética mais sóbria, e os assassinatos sangrentos dão lugar a um body horror construído a partir das elaboradas coreografias das dançarinas. Portanto, entre tantos remakes frios lançados atualmente, o diretor consegue imprimir uma originalidade que, mesmo ainda não fazendo jus ao primeiro filme, inova de muitas maneiras — e em especial na trilha sonora.
Uma das formas mais interessantes pelas quais Guadagnino imprime sua marca é através da escolha de Thom Yorke — principalmente conhecido por ser o vocalista do Radiohead e, que, diferentemente do seu colega de banda, Jonny Greenwood, não havia ainda trabalhado em uma trilha sonora completa — para compor as canções do filme. A decisão pode parecer surpreendente à primeira vista, considerando o estilo mais experimental e introspectivo do músico inglês. No entanto, os projetos solos de Yorke, repletos de texturas sonoras e atmosferas emocionais profundas, se alinham perfeitamente com a abordagem de Guadagnino.
Ao se afastar da potência e do estilo característico da trilha original de Goblin, Yorke cria uma paisagem sonora que é ao mesmo tempo opressiva e melancólica, precisamente adequada à estética sombria e densa da obra audiovisual. Faixas como "Suspirium" e "Unmade" revelam uma delicadeza e uma introspecção que reforçam os temas emocionais do filme, enquanto composições mais intensas como "The Hooks", "Volk" e "A Choir of One" capturam a tensão e a dissonância psicológica da trama.
Além disso, a voz distintiva de Yorke acrescenta uma camada adicional de vulnerabilidade e angústia à trilha sonora, tornando-a uma parte essencial da experiência do filme como um todo. Mas essa integração harmoniosa entre música e imagem não impede que o álbum seja apreciado fora do contexto do filme. Ppelo contrário, grande parte das músicas funcionam muito bem separadamente e demonstram a versatilidade das composições.
Clássico ou reinvenção, ao escutar as trilhas de ambos os Suspirias, é evidente que presenciamos um ótimo exemplo do poder da música dentro de uma obra cinematográfica. Seja através de composições intensas e cacofônicas ou de paisagens sonoras mais introspectivas, a música tem o poder de amplificar emoções e criar conexões mais profundas com o espectador. Às vezes, uma trilha sonora pode até tornar-se a protagonista, e fazer com que o filme permaneça na memória por muito mais tempo.