Tim Maia e sua imunização racional
Sobre o disco Racional, a conversão, e a desilusão do artista
Sebastião Rodrigues Maia, mais conhecido como Tim Maia, é um dos maiores ícones da música popular brasileira. Nascido e criado no Rio de Janeiro, durante a juventude já convivia com grandes nomes do cenário musical nacional, como Jorge Ben, Erasmo Carlos e Roberto Carlos, com quem, inclusive, formou o grupo The Sputniks em 1957.
Em 1959, Tim Maia embarcou para os Estados Unidos com o objetivo de estudar inglês, mas foi outro aspecto da cultura norte-americana que chamou sua atenção. Lá, teve o primeiro contato com o soul music enquanto participava do grupo vocal The Ideals, fato que viria a tornar seu estilo de composição único no Brasil. No entanto, após quatro anos no país, foi deportado por roubo e posse de drogas.
No retorno ao Brasil, dedicou-se ainda mais à musica e à busca por uma carreira solo. Em 1970, gravou seu primeiro álbum, o Tim Maia, que, rapidamente, tornou-se um sucesso através de músicas como "Azul da Cor do Mar" e "Primavera". Nos três anos seguintes, lançou mais três discos homônimos, que também alcançaram grande popularidade. Faixas clássicas como "Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)" e "Gostava Tanto de Você" integram esse começo de carreira.
Entretanto, meu objetivo com texto de hoje é explorar um pedaço dos dois anos seguintes ao auge do sucesso do artista. De julho de 1974 a setembro de 1975, Tim Maia aderiu à doutrina filosófico-religiosa conhecida como Cultura Racional — e altamente inspirado pelos ensinamentos do livro Universo em Desencanto, produziu Racional, um disco de dois volumes exclusivamente sobre a doutrina.
A Cultura Racional
Antes de seguir com a história de Tim Maia e de seu curioso disco, acho importante contextualizar o que exatamente é a Cultura Racional.
Apesar de apresentar características de um discurso religioso, o movimento não se assume como tal, e sim como uma filosofia de vida. Essa filosofia, portanto, surgiu em meados de 1930, na cidade do Rio de Janeiro, desenvolvida por um ex pai de santo umbandista chamado Manoel Jacinto Coelho, que prega a leitura de uma série de livros denominada Universo em Desencanto.
Essas obras propõem uma visão alternativa da realidade, com foco na ideia de que o ser humano deve buscar o autoconhecimento e a compreensão do seu lugar no universo por meio de uma transformação interior. Isso, misturando uma variedade de temas que vão desde cosmologia, metafísica, ecologia, linguística e teologia até discos voadores.
A filosofia dos adeptos, basicamente, se fundamenta na crença de que a solução para os problemas da humanidade reside no entendimento das leis universais e na prática de atitudes que conduzem à evolução espiritual. Segundo os preceitos da Cultura Racional, a humanidade está em uma fase de transição e, para alcançar um nível superior de entendimento e harmonia, é preciso que as pessoas abandonem conceitos limitantes e superem as influências externas que as distanciam de seu verdadeiro eu. E foi nisso em que Tim Maia, durante seis meses, acreditou cega e profundamente.
Leia o livro
Tudo começou, de fato, com o livro. Tim Maia estava em um invejável momento da carreira: havia aceitado uma proposta da gravadora RCA para produzir um álbum duplo com total liberdade artística, recebendo também um alto valor adiantado. Em julho de 1974, já com algumas bases das canções prontas, mas ainda sem letras, foi visitar o compositor e seu amigo Tibério Gaspar para que o ajudasse nessa parte da produção. Na casa de Tibério, encontrou o tal livro Universo em Desencanto, começou a lê-lo e o levou para casa. A partir daí, sua conversão começa — e é refletida diretamente nas letras do novo álbum.
A primeira música desse futuro projeto a ser divulgada foi “Imunização Racional (Que Beleza)”, tocada durante um show e seguida de um discurso onde o artista promovia a Cultura Racional. Nessa época, Tim Maia abraça uma nova vida. Dá uma pausa nas drogas e no álcool, emagrece, passa a usar somente roupas brancas e para de consumir carne vermelha. Como consequência desse estilo de vida mais “saudável” (apenas em alguns aspectos), sua voz que já era incrível — mas que vinha se danificando pelo hábito de fumar —, atinge o auge.
É esse um dos pontos mais notáveis de Racional, além, claro, das letras exóticas e místicas. No entanto, a RCA não pareceu ficar muito feliz com esse enfoque religioso e ameaçaram não comprar o disco caso o cantor não mudasse esses aspectos. Tim Maia pouco se importou com a gravadora e decidiu prensar e distribuir o LP por conta própria, através do próprio selo independente que havia criado, o Seroma. A criação do selo foi um de seus maiores acertos da época, pois a partir daquele período o músico jamais voltaria a lançar músicas por outra gravadora e teve domínio total sobre sua obra, coisa que poucos artistas da época possuíam.
Lançado o disco, a distribuição foi feita de maneira bastante informal e semi-amadora. Poucos exemplares foram deixados em consignação nas lojas, e uma parte das cópias foi vendida diretamente por Tim Maia e seus músicos, tanto em apresentações quanto de porta em porta.
Essa forma de distribuição prejudicou a divulgação do álbum, já que não houve uma circulação nacional eficaz, fazendo também com que fosse completamente ignorado pela crítica da época. As apresentações de Tim Maia tornaram-se escassas, e muitas das que ele conseguiu realizar eram gratuitas ou voltadas exclusivamente para os membros da doutrina Racional, o que dificultou ainda mais o alcance do público em geral. Como consequência, o álbum teve pouca exposição nas rádios, e apenas uma de suas faixas, "Imunização Racional (Que Beleza)", conseguiu tocar em algumas emissoras.
Tempo depois, aos poucos, Tim Maia foi se desencantando com a doutrina. Em 25 de setembro de 1975, como conta Nelson Motta, autor do livro Vale Tudo: O Som e a Fúria de Tim Maia, o músico acordou com muita vontade de comer carne, beber e fumar maconha. Ele, então, voltou para casa, quebrou tudo e gritou pela janela que Manoel Jacinto era um “pilantra, ladrão” e que “comia todo mundo”.
Em meio a desilusão, envergonhou-se também dos discos e fez com que saíssem de circulação, além de, também, efetivamente destruir muitas das cópias que restavam. Com o relançamento do disco após sua morte e o posterior reconhecimento por parte do público e da crítica — até atingir o status de cult — os vinis originais de Racional tornaram-se itens de colecionador, extremamente raros de serem encontrados e exorbitantemente caros. Em 2011, outras músicas da fase Racional foram descobertas e um disco póstumo batizado de Racional Volume 3 também foi lançado. Hoje, essas três versões estão disponíveis em aplicativos de streaming de música.
Racional e o fascínio por narrativas
É inegável que há um fascínio coletivo por discos “perdidos”; por qualquer objeto que traga consigo, além de seu conteúdo direto, um contexto que o complemente. O que ocorre, porém, é que muitas vezes a narrativa que determinado item carrega acaba sobressaindo ele próprio, deixando os sentimentos em relação à obra um pouco confusos.
Isso me lembra de um experimento antropológico chamado Significant Objects, feito por Rob Walker e Josh Glenn, que tinha o objetivo de explorar como os objetos comuns, quando acompanhados de uma história interessante ou contexto rarificado, podem ser transformados em itens de grande valor. Para provar a hipótese, os autores compraram objetos triviais em lojas de segunda mão por preços super baixos e pediram para que escritores criassem uma história para cada um desses objetos. Em seguida, divulgaram os itens — agora com um valor significativo — no e-bay por preços consideravelmente mais altos, com as histórias fictícias em suas descrições. O resultado? Todos os objetos foram vendidos. (Caso interessar, gosto muito da história escrita para essa lembrancinha de cachorrinhos dálmatas).
E por que estou me prolongando tanto nesse assunto? Porque Racional conversa diretamente com esse comportamento social. Pela interessante história por trás do álbum, e também por sua consequente condição de raridade, no momento em que o escuto, me sinto na obrigação de encontrar no conteúdo dessa peça idealizada algo também igualmente interessante. E aí encontro um dilema. Será que Racional sofre por sempre se comparar a idealização de novos ouvintes, e eventualmente não se colocar ao nível dessa criação; ou a peça, em seu contexto, carrega um misticismo, evoca um fascínio capaz de fazer-nos venerá-la um pouco exageradamente?
Me faço essa pergunta porque, por mais que acredite que a resposta, como no experimento com os objetos de segunda mão, esteja principalmente na última questão, minha experiência com o álbum — escutando-o e percebendo sua recepção por parte de outros ouvintes - me faz entender que as duas estão integralmente conectadas. A idealização está presente, e é justamente resultado dessa veneração.
Ao ouvir Racional, é impossível não se deixar levar pelo simbolismo que cerca a produção do disco. As faixas, que unicamente falam de autoconhecimento, de uma busca pela verdade universal e de um despertar espiritual, são sim repetitivas (“Leia o Livro Universo em Desencanto”, por exemplo) e, em alguns momentos, de difícil acesso para quem não compartilha da mesma visão de mundo que a Cultura Racional propõe. Ainda assim, a experiência de ouvir o disco parece ganhar um peso extra com todo esse estranhamento. A sensação de estar acessando algo único, um pedaço da vida e da busca pessoal de Tim Maia, é um dos fatores que tornam a obra tão cativante.
Leia o livro
Universo em desencanto
Leia e vai saber o que é encanto
Leia e vai salvar o desencanto
Mas, ao empregar um olhar mais crítico, percebemos que talvez, ao contrário da fama que carrega, Racional não seja o ponto mais alto da carreira do artista. Tim Maia, em seus quatro primeiros discos, conseguiu trazer sua própria identidade para a soul music, produzindo algo que era completamente novo no cenário nacional e que ajudou a construir as bases para o que hoje conhecemos como música pop brasileira. Sua irreverência reinava no romantismo, na simplicidade de letras leves, pouco rebuscadas, e que ao mesmo tempo eram tão cativantes e próprias da personalidade do artista — tanto que, após superar a fase racional, retorna a estes mesmos temas.
Uma das grandes desvantagens de Racional se aloca, portanto, justamente na supressão desse estilo romântico-brega tão característico do cantor para dar lugar a um discurso mais sério e catedrático, com letras excessivamente didáticas. As composições refletem mais o fervor e a disciplina de Tim Maia com a doutrina do que, talvez, uma verdadeira busca pela inovação musical. Sua voz, claro, ainda é impressionante e é o principal destaque técnico do disco — junto com algumas breves inclinações à experimentação em faixas como “Rational Culture” e “Guiné-Bissau, Moçambique e Angola Racional”.
We came from a super world
World of rational energy
And we live in an anti-world
World of animals' energy
Read the book
The only book, the book of God
Universe in Disenchantment
And you're gonna know the truth
E aqui surge a questão que permeia a experiência de ouvir o álbum: será que a obra seria tão aclamada se não fosse pela história que a envolve? Seria Racional apenas mais um disco de uma fase experimental na carreira de Tim Maia, ou é a narrativa que o cerca que o transforma em algo mais, algo que devemos venerar, mesmo que nem todas as suas faixas sejam de fato brilhantes? A resposta, é claro, não é simples, mas a sensação de que Racional é algo raro e, por isso, digno de uma análise mais profunda, continua a ser um dos principais elementos que alimentam sua fama.
Nesse sentido, o álbum revela algo sobre a relação entre a arte e o público. O misticismo, a escassez e a carga simbólica acabam atribuindo ao disco um poder que talvez ele não tenha por si só. Racional se transforma, portanto, em um objeto de culto não apenas pela sua qualidade musical, mas pela aura de mistério e pela experiência de ouvi-lo dentro de um contexto tão específico.
E assim, mesmo que a música em si não corresponda sempre às nossas expectativas, o fascínio pelo disco persiste, como um reflexo dessa nossa tendência humana de buscar e valorizar o que é raro, o que é diferente, e o que carrega consigo uma história que vai além do que podemos ouvir. E por todas essas razões, seja por curiosidade, pela qualidade musical, ou até por interesse pela doutrina, Racional é um álbum que vale a pena ser escutado, ao menos uma vez — mesmo que o próprio Tim Maia talvez não concorde com isso.
foda demais!!! amo as ilustras de vocessss