Víctor Jara: referência na arte e na luta popular chilena
As marcas de resistência que o cantor deixou para o país
Ni perdón, ni olvido! — em português algo como ‘nem perdoar, nem esquecer’ — é o grito de ordem ecoado há décadas pelo povo chileno que se opõe aos horrores vividos durante o golpe de estado que assolou o país. Em 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas, lideradas pelo general Augusto Pinochet, deram um golpe de Estado, que encerrou o governo democrático e socialista de Salvador Allende.
O regime ditatorial de Pinochet, como os outros governos militares apoiados pelos Estados Unidos nos países latinos, foi avassalador. Esse período de constante violência e censura acabou ceifando a vida de muitos que lutavam como podiam para que a situação se revertesse. Entre essas vidas, estava a do cantor, compositor, professor, poeta e ativista Víctor Jara.
O começo
Filho de camponeses, nasceu em 1932 numa província chuvosa do sul do Chile, onde, até os 12 anos, viveu atado às raízes folclóricas que a vida fora dos centros urbanos proporcionava. Foi nessa época também que, por influência da mãe, teve os primeiros contatos com a música — paixão que só ia desenvolver efetivamente ao entrar no coral da Universidade do Chile, já mais velho e morando sozinho próximo à capital do país.
Outra de suas paixões era o teatro, que, inclusive, foi a que mais levou a cabo durante sua juventude. Passou por companhias teatrais, estudou atuação e direção na Universidade do Chile e consagrou-se como diretor artístico, apresentando suas peças de teatro em algumas turnês pela América Latina e Europa. No entanto, também é em um grupo folclórico da universidade que conhece a igualmente influente cantora Violeta Parra, que o incentiva a continuar sua carreira musical.
Foi aos 29 anos que compôs sua primeira canção: a clássica “Paloma quiero contarte”. A partir daí, compaginou suas duas paixões, tendo participado de algumas compilações de música folclórica, enquanto seguia com a carreira no teatro e tornava-se professor da disciplina na Universidade do Chile.
Paloma quiero contarte
que estoy solo,
que te quiero
Que la vida se me acaba
porque te tengo tan lejos,
palomita verte quiero
Seu primeiro disco solo, Víctor Jara, foi lançado em 1966 e abriu ainda mais os caminhos para que suas composições, ainda muito dotadas da temática rural, chegassem no meio urbano e adquirissem também o tão característico caráter de denúncia social.
Nueva Canción Chilena e ativismo
Ao que as letras de suas canções tornaram-se mais políticas, Víctor Jara foi se estabelecendo como um dos principais nomes do Nueva Canción Chilena. Esse movimento ganhou muita força durante os anos 60 e 70, no momento político que vai desde o governo do democrata-cristão Eduardo Frei Montalva, em 1964, até ao fim da coligação de partidos de esquerda Unidad Popular e à derrubada do presidente socialista Salvador Allende em 1973, quando muitos dos seus expoentes tiveram de abandonar o país. Além do ativismo político explícito nas letras, a Nueva Canción também pregava um resgate da sonoridade da música folclórica chilena, em contraposição ao imperialismo cultural dos Estados Unidos.
Ao lado de outros grandes nomes dessa revolução cultural, como Violeta Parra, Margot Loyola, Gabriela Pizarro, Héctor Pavez, e até mesmo Pablo Neruda, Jara cantou a vida e a luta do proletariado da América do Sul, compondo canções que se tornaram símbolo de resistência naquela década — e que têm seus significados perdurados até hoje.
“A canção segue sendo uma arma de luta. A canção autêntica, a revolucionária, tem que mudar o homem para que esse mude o sistema. Essa tentativa de busca dos compositores segue estando comprometida com a realidade do Chile […]”
Um dos maiores exemplos de seu ativismo através da música nessa época se dá em 1969, com a canção "Preguntas por Puerto Montt", presente no disco Pongo en tus manos abiertas. Aqui, Jara questiona o então presidente Eduardo Frei Montalvo sobre a repressão policial contra os moradores desta cidade do sul do Chile, que culminou na morte 11 pessoas, incluindo crianças.
¡Ay! Qué ser más infeliz
El que mandó disparar
Sabiendo como evitar
Una matanza tan vil
Puerto Montt, oh, Puerto Montt
Nos meados da campanha de Salvador Allende — o único presidente marxista a chegar ao poder pelo voto popular —, o cantor assumiu uma posição diretamente política, marcando seu compromisso com o que chamava de "socialismo à la chilena”. Jara foi, inclusive, nomeado embaixador cultural do governo de Allende. Entre os anos 1970 e 73, portanto, se tornou um dos mais conhecidos defensores do presidente e do sonho de construir uma vida de igualdade para o povo de seu país.
Regime Pinochet
No dia 11 de setembro de 1973, no entanto, esse sonho começou a parecer cada vez mais distante. Se dava início a Ditadura Militar Chilena, encabeçada pelo general Augusto Pinochet, que se proclamou chefe de estado após confrontos violentos no palácio da presidência entre o exército e apoiadores de Allende. O voto que a maioria do país depositou no então presidente eleito não foi suficiente para combater o apoio militar e financeiro do governo dos Estados Unidos e de outras organizações de extrema direita.
Analisando o desenrolar da situação, não é exagero dizer que Víctor Jara levou as mensagens políticas que carregava em suas músicas até as últimas consequências. A importância do artista para a luta de classes chilena foi tanta que, imediatamente após a tomada de poder, foi capturado pelos militares.
Foi no Estádio Chile, que hoje leva seu nome, que Jara viveu seus últimos dias, ao lado de outros professores, estudantes e ativistas da oposição. Um total de 5.000 pessoas. Nos dias anteriores à sua execução, o cantor escreveu seu último poema: “Somos 5.000”.
El derecho de vivir en paz

No que provavelmente tornou-se uma das canções mais icônicas de Victor Jara, “El derecho de vivir en paz”, presente no disco de mesmo nome, o artista despeja todas suas características mais marcantes. Nela, há um grito de denúncia, um chamado a lutar pela paz, seja essa luta como for. Se afastando de um simples pacifismo, Jara canta contra a invasão americana no Vietnam enquanto prega pelo direito do povo vietnamita de se defender dos agressores — prestando também uma homenagem ao revolucionário Ho Chi Minh, um dos líderes dessa luta. No entanto, sem perder os aspectos da Nueva Canción, esses significados todos são também agrupados em uma sonoridade cheia de elementos da música tradicional campesina. Foram necessários somente um violão e um canto agudo para eternizar essa mensagem lírica.
Claro que, ao trazer a seguinte temática para seu próprio país igualmente necessitado de uma incitação popular, transfere a ela novos significados mais abrangentes e acaba por torná-la uma das mais importantes composições de resistência da América Latina. A história se repete — e enxergamos nos versos sobre a luta vietnamita a trajetória de cada povo oprimido.
Até hoje, é comum ouvir a canção em protestos, marchas e manifestações, ecoando seu significado e, consequentemente, o legado de Víctor Jara por milhares de vozes.
El derecho de vivir
Poeta Ho Chi Mi
Que golpea de Vietnam
A toda la humanidad
Ningún cañón borrará
El surco de tu arrozal
El derecho de vivir en paz