As subjetividades de uma experiência coletiva
Reflexões e perspectivas da Repeteco sobre o Olhar de Cinema
É sempre um pouco ingrato tentar resumir uma experiência que, por natureza, escapa à linearidade. Um festival de cinema acaba não sendo somente uma sequência de sessões em salas escuras — embora isso seja parte fundamental da vivência —, mas também o que acontece fora da sala: nos corredores, nos encontros inesperados, nos silêncios entre um filme e outro. E é claro que o festival a que me refiro é o Olhar de Cinema, esse evento que, se você acompanha a Repeteco ou a programação cultural da cidade de Curitiba, certamente já soa familiar.
Mesmo sendo algo extremamente coletivo, que parte da interação entre uma diversidade de pessoas e se fundamenta justamente nesse contato — de pessoas com filmes e de pessoas com outras pessoas —, acredito que experiências como essa também sejam essencialmente individuais. E talvez seja nessa subjetividade ao encarar a programação de um festival de cinema, que suscite meu interesse, e talvez o interesse de outros, nesse texto. O coletivo — o geral — já foi vivido. Agora nos cabe contar um pouco dessa experiência em nível pessoal. Em nível Repeteco, mais especificamente.
São muitos os motivos que nos fazem produzir o texto de hoje. A começar pelo fato de que este foi o primeiro evento internacional e de grande alcance que tivemos o prazer de cobrir como imprensa, então é natural que seja tão marcante. Ainda nos pioneirismos, o Olhar de Cinema também motivou a realização de nossa primeira edição física: a Repeteco Late Sobre Cinema, que foi distribuída pelos espaços do festival — e acaba representando um importante desdobramento do nosso trabalho em torno da crítica e da mediação cultural.
Não poderíamos imaginar lugar melhor para essas estreias. E é por isso que no texto de hoje nos debruçamos justamente sobre o nosso olhar do festival. Olhar esse que também acaba, inevitavelmente, sendo atravessado por toda coletividade que o evento propõe.
Da abertura ao encerramento
É de praxe o culto às cerimônias. Talvez porque, diante de algo tão imaterial quanto a experiência de um festival de cinema, feita de encontros fortuitos, conversas fragmentadas e imagens em movimento acumuladas, seja preciso criar marcos. Pontos de partida e de chegada que nos ajudem a organizar, ainda que minimamente, o belo caos desses longos dias.
Há algo simbólico em sentar-se naquela primeira noite, ainda sem saber muito bem o que esperar, diante da tela que se ilumina pela primeira vez. Esse momento foi consagrado na quarta-feira (11), sob o intenso frio da estrutura da Ópera de Arame. O público chegava com casacos, cachecóis, e, aos poucos, copos de quentão e baldes de pipoca completavam a descrição da audiência. É claro que estávamos presentes (e que também carregávamos os itens acima nas mãos). Presentes e ansiosos para dar início a conseguinte semana de novas experiências. E também para assistir à estreia internacional de Cloud, de Kiyoshi Kurosawa.
O filme, com ritmo contemplativo e herança de uma atmosfera de suspense psicológico, foi uma introdução de peso ao espírito do festival. Um cinema que propõe, antes de tudo, uma escuta. Que não tem pressa em se fazer entender. Cloud instaurou uma espécie de clima — e isso, num festival como o Olhar, não é um detalhe. Há um cuidado curatorial que se revela nesses pequenos gestos, e a abertura é o primeiro deles.
E então, após uma grande festa, a semana aconteceu. Filmes, conversas, encontros, cansaços bons. Uma sucessão de imagens que agora, com alguma distância, parecem quase oníricas. Mas isso a gente dá mais detalhes no próximo intertítulo.
Já do outro lado da jornada, no dia encerramento, mais uma vez nos vimos em uma sala escura com um sentimento curioso de entusiasmo e melancolia. O festival começou sua despedida com duas sessões memoráveis do filme Verde Oliva de Wellington Sari, seguidas da grande premiação às obras das mostras competitivas.
A cada nome anunciado, a vibração da plateia parecia confirmar o sentimento de coletividade do Olhar. Como bem definiu Leonardo Ereno, colega nosso que estava na plateia: “Parecia que todo mundo torcia para todos os filmes”. Não era uma disputa de nomes. O que vimos, de fato, foi uma celebração coletiva do cinema e da capacidade que ele tem de criar essas pequenas comunidades temporárias, em que por alguns dias somos todos espectadores um pouco mais atentos, um pouco mais afetados, um pouco mais disponíveis ao outro.
O dia a dia
Respirar um festival de cinema é uma experiência que somente quem passa sabe descrever. E para essa tarefa, não consigo designar ninguém melhor que nosso redator Lucas Alberto, o recordista da equipe no quesito presença. Lucas verdadeiramente viveu a rotina do Olhar de Cinema e se adaptou a programação oferecida. Por isso, nos parágrafos abaixo deixo o relato completo dele:
“Pela primeira vez passando por isso, após anos de cinefilia, vivia dias em que ir a três sessões era normalizado e ainda tinha um lugar na sala de imprensa montada no Cine Passeio me esperando.
O fluxo do festival era organizado no dia-a-dia e pautava a divisão em mostras. Todo dia, dois filmes estreavam na competitiva na Sala Claro do Museu Oscar Niemeyer (MON), com direito a pipoca gratuita e um drink fornecido antes da sessão (não era permitido adentrar o espaço com bebidas alcoólicas). No dia seguinte, para quem perdeu a estreia, os filmes passavam pela segunda vez, ou na Cinemateca de Curitiba, ou no Cine Passeio.
A emoção de fazer parte como público se fez presente com as cédulas de votação, entregue em todas as sessões de competitivas, com notas de 1 a 4. Nos longas, era um papel em formato de cartão que para votar se rasgava o canto da sua nota. Já nos curtas, como as sessões contavam com 3 a 4 filmes, o papel necessitava de uma caneta para marcar a nota. Foram 8 longas da competição brasileira e 6 da internacional. Os curtas, perdi as contas, mas só consegui assistir 4 pelos horários das sessões.
Já falamos aqui anteriormente sobre o Olhar Retrospectivo, mostra que homenageia a filmografia de um diretor por ano — e que esse ano contemplou Agnès Varda. Todas as sessões que estive parte estavam lotadas e consegui ver muitos filmes essenciais que ainda me faltavam, como Catadores e Eu (2000) e Saudações, Cubanos! (1963). Ainda olhando para o passado, o Olhar Clássico trouxe obras efemérides, como A Greve (1925), filme centenário de Sergei Eisenstein, e filmes de diretores recém falecidos, como A Grande Cidade (1966) de Cacá Diegues e Eraserhead (1977) de David Lynch.
Além disso, havia uma parte do festival destinada a estreias brasileiras de filmes fora de competição, as chamadas Exibições Especiais, onde vi Tardes de Solidão (2024), de Albert Serra, e Hot Milk (2025), de Rebecca Lenkiewicz, que chegará na MUBI ainda esse ano. Outra programação especial que pude acompanhar foi a de Pequenos Olhares, curtas infantis que passaram no Cine Passeio e no Teatro da Vila. Em uma dessas sessões, as equipes de dois dos três curtas que passaram estavam sentadas ao meu lado e falaram sobre a produção daqueles filmes.
Falando em sentar do lado, frequentar os mesmos espaços que pessoas tão importantes do cinema nacional também é parte do festival. Pude conversar com equipes de filmes, atores, diretores, produtores, todos ao alcance. Vi um filme no Cine Passeio ao lado de Marieta Severo, assisti a estreia de Aurora (2025) no MON uma fileira atrás do diretor do filme, João Vieira Torres, e o diretor assistente, Marcelo Caetano, que dirigiu o aclamado Baby (2024).”
Fechando a cortina (por ora)
Mas, além da vasta programação de filmes, nossa equipe também contou com uma representante presente em uma das oficinas oferecidas pelo festival. Sophia Dias, diretora de arte da Repeteco, foi selecionada para participar da Oficina de Direção Cinematográfica, ministrada pelo diretor e roteirista Bruno Costa, que hoje atua na direção de episódios da série Cidade de Deus.
“A sala estava bem cheia, todos faziam muitas perguntas, estavam bem interessados. Vi um pessoal mais velho perto de mim comentando sobre isso, inclusive. Sobre esse interesse da galera mais jovem e como estavam aproveitando a oportunidade de estar nesse espaço. No geral, foi muito proveitoso, durante os dois dias de oficina aprendi muito com o Bruno Costa, que também foi muito atencioso e sempre aberto conversar com as pessoas, mesmo após o fim das aulas.", conta Sophia.
A oferta de uma programação cinematográfica alternativa à exibição de filmes comprova esse aspecto importante do festival, que ressaltamos tanto ao longo do texto de hoje: o fato de operar também como lugar de troca, aprendizado e formação, assim como um ponto de encontro entre diferentes gerações e trajetórias. Entre quem já faz e quem está começando a fazer.
Esperamos poder acumular cada vez mais experiências como essa, em eventos que também nos permitam encontrar e explorar subjetividades e perspectivas próprias com tanta clareza. Acima de tudo, a Repeteco é feita dessas experiências, se alimenta desses contatos inesperados e vivências que sempre rendem um texto ou outro. Um desenho também, claro.
Ao Olhar de Cinema, nosso muito obrigado. E até logo.
apaixonada pela edição física <3