Ouvir música exige esforço. Pode ser que essa frase soe um tanto hiperbólica, mas, para escutar ativamente uma canção, precisamos, inevitavelmente, exercitar nossa atenção e concentração. E quando sinto que não posso doar grande parte do meu foco à música, mas, ainda assim, preciso que o silêncio seja preenchido? A resposta está na música ambiente.
É fato que há um crescente interesse em escutar canções que exijam pouco ou quase nada de atenção durante a realização de tarefas importantes. O boom dos vídeos infinitos de lo-fi’s para estudar não é somente um exemplo solto desse fenômeno, mas diversas pesquisas recentes também apontam a influência que certos tipos de música possuem na nossa concentração.
De acordo com o professor e pesquisador da área de aprendizagem Danilo Torini, as músicas mais adequadas para estudar são as instrumentais, as clássicas e as de ambiente. “Como elas não possuem letra, são menos intrusivas, melhoram o humor, reduzem o estresse e, na maioria das vezes, auxiliam para evitar distrações”, afirma. Este texto, por exemplo, escrevo enquanto escuto Discreet Music, disco pioneiro da música ambiente feito por Brian Eno (calma, logo chegamos nessa parte da história).
No entanto, se engana quem acha que servir de mero plano de fundo é a única capacidade da música ambiente. Dentro do gênero, há inventividade, importantes experimentações com instrumentos eletrônicos e acústicos e, também, o poder que as canções têm de mesclar-se com o mundo real, criando novas percepções dependendo do contexto em que a música é escutada. E isso tudo, junto com as origens e características do estilo musical, abordo no texto de hoje.
A descoberta
Há algo fundamental a se entender antes de pensar qualquer característica do gênero de música ambiente: ele está completamente atrelado a Brian Eno. Desde seu surgimento e a consolidação de suas características até a própria evolução desses elementos, tudo nos convida a olhar para o músico inglês e sua sensível descoberta.
Eno começou sua carreira nas sonoridades do glam rock, como já abordamos neste texto específico sobre o gênero. A expressividade e oportunidade de experimentação que a carreira solo do músico permitiu após sua saída do Roxy Music são os grandes pilares do contexto da criação da ambient music. Após lançar 5 discos muito distintos entre si em um intervalo de apenas 2 anos (1973 a 1975), lança, neste último ano, o Discreet Music (sim, o que falei ali em cima), resultado de um experimento não intencional.
A ideia principal para este disco — que somente em 1978 Eno viria a batizar oficialmente como ambient — surgiu como consequência de um acidente sofrido pelo artista. Enquanto se recuperava, colocou um disco para tocar, deitou-se na cama e logo percebeu que havia deixado o volume muito baixo. Sem forças para se levantar, cedeu a essa maneira de ouvir e se encantou com a possibilidade de ainda poder escutar a chuva que caía na janela. Assim, dedicou-se à missão de criar uma música que não se impusesse ao espaço de nenhuma situação.
Mais que “música de elevador”
A criação de um nome para o tipo de música que Brian Eno vinha produzindo a partir de Discreet Music se fundamenta na vontade que tinha de diferenciar-se da Muzak Corporation e suas famosas músicas de elevador. Essa corporação — ou marca — criada em 1934, foi muito popular nos Estados Unidos por fazer a distribuição de músicas de fundo para estabelecimentos comerciais e empresas via cabos elétricos. Esse serviço foi tão disseminado que ainda hoje é normal escutar a palavra "muzak" sendo usada para se referir a músicas que se assemelham com essas que ouvimos em elevadores e consultórios médicos. Além disso, é também uma forma de chamar alguma canção de sem graça ou esquecível.
As conotações que esse termo carrega são aquelas particularmente associadas ao tipo de material que a Muzak Inc. produz: melodias familiares arranjadas e orquestradas de forma leve e secundária. Compreensivelmente, isso levou a maioria dos ouvintes (e a maioria dos compositores) a rejeitar completamente o conceito de música ambiental como uma ideia digna de atenção. […] Para criar uma distinção entre meus próprios experimentos nessa área e os produtos de vários fornecedores de música enlatada, comecei a usar o termo Ambient Music.
A fala acima é do próprio Brian Eno, no texto que acompanha o disco Ambient 1: Music for Airports, de 1978. Pode não parecer à primeira vista, mas há uma grande diferença entre as canções-produto muzak e o gênero Ambient Music. Enquanto um tenta encobrir o próprio contexto em que se encontra, busca disfarçar o tédio do dia a dia e, consequentemente, remove o senso de interesse genuíno pela música, o outro atua justamente na amplificação dessas acústicas da rotina, mantendo uma sonoridade ao mesmo tempo minimalista e experimental, que convida à apreciação na mesma medida que acalma e induz espaço para pensar.
As criações
Mesmo com a genialidade e o pioneirismo de Eno sendo amplamente comentados em nichos musicais, não é comum que o conteúdo da música ambiente seja um tema de discussão na crítica musical. No entanto, há, sim, aspectos a serem explorados dentro de alguns dos discos mais marcantes.
Minha intenção é produzir peças originais, ostensivamente (mas não exclusivamente) para momentos e situações específicas, com o objetivo de construir um catálogo pequeno, mas versátil, de música ambiental adequada a uma ampla variedade de estados de espírito e atmosferas.
Essa descrição que o músico faz de seus projetos, no mesmo texto já anteriormente citado, é provavelmente a característica mais evidente que encontramos em cada álbum. Se pensarmos em Music for Airports, por exemplo Eno cria, ao longo de quatro faixas, uma atmosfera que é simultaneamente introspectiva e expansiva, pensada para ser escutada nesses locais de passagem, como aeroportos, lotados de rostos desconhecidos e que provavelmente permanecerão nesse mesmo estado.
Ao contrário de outras formas de música, onde o foco está na melodia ou no ritmo, Eno cria um espaço sonoro contínuo, onde as texturas e os timbres se tornam protagonistas. Ele manipula sons etéreos e repetitivos, criando um fluxo que se desvanece e se transforma, proporcionando uma sensação de espaço e leveza. Eno torna o caos potencial de um ambiente público e agitado em tranquilidade, quase como se a música fosse projetada para ajudar a navegar nesses momentos de transição e reflexão.
Em On Land, de 1982, Eno dá um passo mais longe em direção a uma estética ambiental mais densa e texturizada. Ao invés de reproduzir um espaço aberto e fluido como em Music for Airports, mergulha em um mundo sonoro mais terreno e, ao mesmo tempo, misterioso. As faixas do álbum são mais experimentais e obscuras, com sons orgânicos e percussivos que evocam paisagens sonoras inóspitas, quase primitivas. A música parece imergir o ouvinte em uma jornada por ambientes desolados, onde os sons das gravações de campo, vozes processadas e sintetizadores dão forma a uma paisagem sonora que é tanto familiar quanto alienígena. É um convite para explorar o desconhecido, revelando uma estética que está enraizada na ideia de que a música não deve apenas ser ouvida, mas vivida, como um espaço a ser habitado.
Já Apollo, lançado em 1984, é, para mim, um dos que mais traduzem o poder da mescla entre música e som ambiente. Talvez porque dificilmente esse disco chegue a ser ouvido diretamente do espaço — que foi o contexto de inspiração para o conteúdo do projeto —, a sonoridade que Eno alcança aqui é capaz de nos teleportar para este lugar. A música, novamente, alcança novas capacidades e atinge novos limites. Apollo reproduz aquela sensação de imensidão e solidão do universo, que mesmo não permitindo que o som se propague nele, de alguma forma carrega consigo uma trilha sonora etérea, um silêncio musical — que imagino soar exatamente como esse álbum de Brian Eno.
Poderia citar tantos outros, mas acredito que esses três são importantes marcos na trajetória do artista e do gênero. Cada disco expande as fronteiras da música ambiente e desafia as expectativas sobre o papel da música na vida cotidiana.
Além de Eno: desdobramentos do ambient music
Mesmo que Brian Eno tenha sido pioneiro em definir o conceito do gênero, antes dele já haviam experimentações sendo feitas no mesmo sentido. Um exemplo fundamental são as bandas alemãs Popol Vuh e Tangerine Dream. Inspiradas pelo forte experimentalismo musical em que o país se encontrava graças ao krautrock durante os anos 70, ajudaram a pavimentar o caminho para o desenvolvimento da música eletrônica ambiental. O uso criativo dos sintetizadores e a visualização da música como paisagem e textura, embora com uma sonoridade às vezes mais voltada ao rock progressivo e à música eletrônica experimental, compartilham a mesma busca por atmosferas expansivas e imersivas. Sugiro escutar os discos Affenstunde (1970) e Alpha Centauri (1971).
Mas, também há outro grande influenciador da música ambiente que se apresenta quando olhamos um tanto mais atrás — mais especificamente, para o começo do século XX. Falo do compositor francês Erik Satie, um dos precursores do minimalismo e da musique d’ameublement, ou música de mobiliário. A ideia por trás deste último termo, nessa altura do texto, já deve soar um pouco familiar: a música deveria atuar como uma mobília, preenchendo o ambiente e misturando-se com os ruídos naturais, sem se impor.
Já nos tempos atuais, inspirando-se em toda essa gama de produções criativas, há uma infinidade de trabalhos e estilos que se desdobram diretamente da música ambiente. No final dos anos 90 e início dos anos 2000, por exemplo, surge o movimento conhecido como downtempo — podemos até colocar alguns projetos de trip-hop dentro desse grupo —, com artistas como Moby, Air, Morcheeba, Massive Attack, DJ Shadow, Portishead, entre tantos outros, experimentando atmosferas etéreas e minimalistas, embora com uma abordagem mais melódica e acessível. Com o passar dos anos, a música ambiente e suas ramificações, que antes estavam mais confinadas a nichos experimentais, começaram a infiltrar-se em um espectro mais amplo de públicos e contextos.
De qualquer maneira — diluindo-se para estilos mais populares ou permanecendo em sua essência experimental — o gênero ambiente ainda serve como uma lembrança de que não há apenas uma maneira de se escutar música. Seja colocando toda ou parte de nossa atenção, esses sons que escolhemos ouvir não apenas servem como distração, mas também possuem a capacidade de redefinir os espaços que habitamos e mudar a maneira em que interagimos com o nosso contexto. Quando um lugar parecer tedioso, acomode-se, coloque seus fones, escolha um disco ambiente, e repare nos detalhes do que te cerca.
Acabei esquecendo de comentar à época que li, mas fui a um evento chamado Campo Esquerdo (@campo.esquerdo) aqui no Rio no ano passado, e que também rolou em São Paulo há uns meses organizado por Numa Gama (@numagama).
Foi uma experiência incrível, cheguei no MAM para ver um filme e me deparei com um evento de música, mas que à minha percepção inicial não era o típico evento de música (show) que estou acostumado a frequentar, porque as pessoas estavam conversando, outras deitadas ouvindo e outras sentadas comendo algo. Estranhei bastante, mas fui deixando a música me levar e comecei a entender melhor o rolê, que no final curti muito e hoje procuro ouvir mais e mais!
(Lembrei disso porque essa semana estou ouvindo muito Brian Eno!)
Abraços e continuem com esse trabalho massa que fazem!!
por alguns posts vejo que talvez você curta meu podcast aqui sobre cinema, quem sabe? 🙂↕️ hehe