É difícil não comparar a cena underground peruana com a brasileira. Mais especificamente, a cena arequipeña com a curitibana. Ambas vindas de cidades consideravelmente grandes, porém longe de serem o foco central das bandas emergentes do país (Arequipa está para Lima como Curitiba está para São Paulo, resumindo) — mas que, ainda assim, conseguem cada vez mais exportar talentos para todo o país.
Cheguei a essa conclusão ao conversar com uma amiga peruana sobre a música independente de nossos respectivos países — algo que, sozinho, já renderia uma matéria inteira —, e me chocar com as similaridades. Desde a realização de eventos que costumam misturar diferentes tipos de arte com a música, como os realizados pela El Wecco e o Vale da Arte, por exemplo, passando pela variedade de estilos diferentes que capturam a atenção do público dentro da cena, até a centralização das oportunidades em partes específicas do território de nossos países.
A partir disso, ela então me mostra 380, ou Tres Ochenta, essa caótica banda originária da cidade de Arequipa. O grupo é formado pelos jovens amigos Lucía Ramirez (voz e segunda guitarra), Milagros Caja Morales (guitarra), Diego Cornejo (baixo e voz) e César Llerena (bateria), e ainda se destaca por mais um fator: propagar um despreocupado rock com vocal feminino no país.
Punk acidental e redes sociais
380 é recente, do início de 2023, mas já alcançaram alguns grandes êxitos nesse curto período de existência: somam mais de 18 mil ouvintes mensais no Spotify, lançaram seu primeiro disco completo e, em 2025, irão integrar o line-up do Vivo X El Rock, ao lado de nomes como Avenged Sevenfold, The Hives e Anthrax.
Uma das razões para essa rápida escalada foi a curiosa presença da banda nas redes sociais. Sem se levar a sério, uma das características da 380 é publicar vídeos humorísticos ou memes em sua conta oficial do Instagram. A vocalista Lúcia chegou a falar sobre esse aspecto em uma entrevista, na qual respondeu sobre comentários que chamam a banda de shitposter.
É que realmente somos muy meme. É uma característica do meu próprio humor isso de fazer graça com minha emoções e com tudo que sinto. 380 nasceu como algo para desabafar e descontar as emoções… e é igual nas redes sociais. Agora já não publico tanto com a conta da 380, mas no começo era algo super frequente. Era um desabafo para mim.
E algo que caminha ao lado desse humor despreocupado é justamente a atitude da banda em relação ao seu próprio som. A 380 não tem a menor preocupação com qual gênero musical são encaixados, e também já deixaram bem claro que não pretendem deixar essa tarefa fácil. Com inspirações que vão desde Bikini Kill até Surf Curse, variam na sonoridade de acordo com o que estão sentindo no momento, sem se deixar prender a um estilo específico.
É, realmente não sabemos muito bem o que fazemos, mas eu diria que é tipo uma junção de punk, indie, surf e grunge.
É assim que Lucía tenta explicar as canções que o grupo produz. A verdade é que, por pouco se preocuparam em enquadrar suas canções em um gênero específico e apenas se deixarem levar pela combinação de referências que carregam no repertório, a banda atinge algo que é realmente difícil de encaixar em uma definição. Em uma escuta ligeira, pode-se chamar de punk ou riot grrrl, em especial pela atitude do grupo em apresentações ao vivo e pelo ritmo acelerado comum a todas suas canções. Diria inclusive que, se viessem a Curitiba, se dariam muito bem com bandas como Patada, As Bravonas e Olivia Yells, por exemplo. Mas também, em muitas faixas, a influência do surf music e do indie rock se fazem presentes através de versos mais melódicos e riffs de guitarra mais limpos.
De qualquer maneira, a certeza é que 380 está longe de ser 100% alguma coisa. A banda é um compilado de referências, ideias e atitudes, sempre fiéis a vontade de simplesmente fazer música por paixão a tudo que envolve o processo. Milagros, o guitarrista, oferece uma boa conclusão sobre o tema.
Talvez nossas canções entrem dentro do gênero punk, ou algumas das nossas atitudes pareçam meio punk. Mas resumir toda nossa proposta nisso, também não creio que represente tudo o que fazemos e somos.
¡No hay tiempo!
E a maior consolidação da proposta da 380 está em seu primeiro — e até agora único — álbum, El Colegio Me Volvió Un Mono, lançado em junho de 2023. Ao longo das curtas faixas que somam 22 minutos de escuta, há uma interessante mistura de rebeldia juvenil, diversão, autoafirmação e grandes doses de humor — e mesmo assim, ainda é possível enxergar a seriedade de certos tópicos por trás das canções. O projeto é desse jeito, cheio de dualidades e contrastes, formando um bom retrato de quem 380 é e do próprio público que atingem.
Musicalmente, o álbum segue a linha descompromissada e múltipla que a banda sempre fez questão de defender. As faixas transitam por uma gama de estilos que, de certa forma, capturam o espírito de uma geração que se sente desconectada das expectativas tradicionais de gênero e sucesso. Cada música carrega a energia crua de um punk descomplicado, mas também o frescor de um indie rock com letras que apontam esse olhar ácido para a sociedade.
“Sin Parar”, single que já havia sido lançado previamente, é uma enérgica abertura para o projeto. Com a repetição de letras gritadas na crueza digna do estilo riot grrrl e sobrepostas por uma melodia pouco complexa, mas igualmente potente, a canção se tornou uma das mais conhecidas do grupo, sendo também a primeira a ganhar um videoclipe.
“Eres arte” e “Generación Zzzzz” seguem o mesmo padrão, mas a segunda já apresenta o lado um pouco mais subjetivo da insatisfação jovem que citei alguns parágrafos acima. De fato, a faixa dialoga com a superfície de um assunto inegavelmente recorrente em rodas de conversa ao redor do mundo: o conflito geracional e a sensação de insuficiência que gerações mais jovens adquirem em relação as suas antecessoras. 380 vomita isso tudo aqui, mas claro, o faz da sua maneira explícita e brutalmente sincera.
O mesmo ocorre em “No Soy Perfectx” e “Lo Siento Mamá”. É bonito ver a pureza em como a banda, aqui, se permite levar um pouco a sério e abordar questões coletivas que claramente também os afetam a nível pessoal. Mesmo com todos seus aspectos humorísticos de pano de fundo, demonstram que há, também, maturidade na juventude, que através das próprias lentes é capaz de traduzir sua opinião e sua indignação através da música. No caso da primeira, em que Lucía afirma que ‘eres mujer y tienes que hacer el bien’, a crítica é em relação aos papeis de gênero e à cobrança constante e desigual que pesa para o lado feminino. Já em “Lo Siento Mamá”, vemos outro exemplo de conflitos geracionais e expectativas frustradas.
Yo nunca quise convertirme en esto
Solo estuve en un colegio
Que me enseñó a como odiar
Y nunca perdonar
Lo siento mamá
E se em No Soy Perfectx a banda faz essa crítica mais direta à estrutura dos papeis de gênero, em “Mis 15” esse assunto é brevemente retomado, mas de uma maneira bem mais caótica. Mais voltada ao surf music, a canção apresenta riffs de guitarra frescos que abrem espaço para o cenário cantado. A narradora completa 15 anos e lista os presentes que gostaria de ganhar, deixando bem claro que não quer uma festa, nem uma saia. Dentre suas opções, estão: que alguém a mate, uma guitarra, ou uma calça.
Ya cumpli 15 hoy
Quiero que me maten porfavor
Yo no quiero una fiesta
Creo que mi vieja estará molesta
Para o final, deixo minhas duas favoritas — sendo uma delas, de fato, a canção que fecha o disco. “TKM KTM (Canción Para Tu Ex XD)” é a despedida de El Colegio Me Volvió Un Mono e se mostra bem mais pop que suas anteriores, narrando o drama de sentir falta de uma pessoa com quem se relacionou. Sincera, engraçada e identificável, a canção é um grande desabafo sobre essas situações amorosas inevitáveis em que a vida nos coloca.
"Clonozepan", na minha opinião a melhor do álbum, é explosiva, excêntrica e chamativa. A canção é uma mistura energética de riffs de guitarra sujos e uma letra irreverente sobre a busca por algo que alivie a angústia e as pressões da vida. Aqui, a banda mais uma vez brinca com a ironia e o humor, trazendo a tona questões pessoais enquanto segue com a típica leveza e falta de pretensão que fazem parte de sua identidade. A canção é rápida, direta e, apesar de seu tom descontraído, transmite uma certa melancolia por trás de seu aspecto frenético.
Primero muerta a reconocer
Que estoy algo sometida
En este dilema llamado vida
No hay tiempo
Para llorar
Hoy prefiero
Clonazepam
Música descomplicada
É justamente essa abordagem sem filtros e sem amarras que torna 380 tão encantadora. Ao longo de seus projetos, mesmo com temas e críticas mais sérias, a banda não perde a capacidade de rir de si mesma e de seu entorno, mantendo essa autenticidade criativa que a caracteriza. E esse processo, para eles, não é sobre encaixar-se em normas ou fórmulas pré-estabelecidas, mas sim sobre a liberdade de criar e se expressar de maneira única e verdadeira. Essa falta de preocupação com a forma, essa maneira descomplicada de fazer música, reflete uma paixão pura pela arte e pela conexão com o público.
A 380 é, acima de tudo, uma banda divertida — e é justamente essa diversão que faz com que suas canções, com todos os seus altos e baixos, ressoem de maneira tão autêntica. Eles estão no palco para brincar, para desabafar, para se encontrar, e, ao mesmo tempo, para conhecer um público que compartilha dessa mesma energia. Isso, por si só, já é suficiente para tornar o trabalho do grupo digno de atenção. Não é preciso ser complexo, complicado. Às vezes, o mais belo é reconhecer a suficiência do simples para se expressar de maneira sincera.